No universo da improvisação livre, do free jazzístico, do
noise e cercanias é imperativo para artistas e produtores cuidarem de perto da
música que fazem, criando formas próprias de registro, apresentação e
distribuição. No Brasil, a realidade não difere e, nesse processo, os selos
independentes se tornam personagens vitais.
A música mais inventiva e experimental sempre teve de
encontrar seu caminho. Antes de o lema Do It Yourself ser associado à cena punk
setentista, os músicos ligados ao free jazz e a free improvisation, ainda em
meados dos anos 60, já tinham que fazer as coisas acontecerem por si mesmos,
criando selos e organizando festivais para manter sua arte viva. Hoje, as
maiores facilidades para fazer uma gravação com relativa qualidade e os atuais
formatos digitais de distribuição, com plataformas como Bandcamp e Soundcloud,
têm favorecido o registro e o desenvolvimento de músicas experimentais em todos
os cantos e formas.
Focando as searas mais ligadas à música apresentada pelo FreeForm, FreeJazz, selecionamos alguns selos, de diferentes lugares do país, que têm ajudado a registrar – por meio físico ou virtual – um pouco do que de mais estimulante tem sido feito no espaço sonoro brasileiro.
Focando as searas mais ligadas à música apresentada pelo FreeForm, FreeJazz, selecionamos alguns selos, de diferentes lugares do país, que têm ajudado a registrar – por meio físico ou virtual – um pouco do que de mais estimulante tem sido feito no espaço sonoro brasileiro.
QTV
(Rio de Janeiro)
Desdobramento do evento Quintavant, que surgiu no Rio de
Janeiro há uns cinco anos focado em “música de improviso, ruídos, longas
formas, estranhezas e afins”, o selo QTV já conta com 15 lançamentos, desde sua
estreia em maio de 2014 com o álbum “Hey Babe”, do Baby Hitler. Desde então,
editaram material de artistas como Bemônio, Chinese Coockie Poets e o intenso encontro
de Eduardo Manso, Felipe Zenícola e Arthur Lacerda com Paal Nilssen-Love. Bernardo Oliveira, um dos nomes por trás
do QTV, fala sobre o selo:
“O QTV surge a partir de um círculo virtuoso dentro da Audio
Rebel, o espaço que é nossa casa: temos um estúdio de gravação cabeado para a
sala de shows; temos artistas cariocas com trabalhos originais e consistentes,
que tocam, ensaiam, trocam ideia naquele espaço; temos técnicos e profissionais
qualificados em diversas áreas, desde a gravação até a programação visual,
desde a lutheria até a invenção técnica. O selo QTV é um dos produtos desse
ambiente, talvez o mais importante.”
*Sonoridades buscadas
“As conhecidas e normalmente atribuídas ao gueto ‘experimental’:
drone, música de ruídos, formas longas, improviso, baixíssimos e altíssimos
volumes, trabalho com data, objetos. Mas são apenas rótulos. Acho um disco
como Rainha, do DEDO, ultraespecial no que diz respeito ao trabalho
com gravações e materiais destacados. Gosto muito também da parceria entre Cadu
Tenório e Eduardo Manso, Casebre, certamente uma concepção bem particular
do que vem a ser noise music. Mas também estamos abertos a sons que nós ainda
não conhecemos, como foi o caso de Anganga, trabalho lançado por Cadu
Tenório e Juçara Marçal, constituído por releituras noise-industrial de
vissungos e cantos do congado mineiro.”
*Edições
“Até agora fizemos um pouco de tudo: digital; prensagem
vagabunda; prensagem com faca própria, desenvolvida pelo Lucas; prensagem
com jewell case e encarte; feito à mão em tiragem limitada a 30
cópias; vinil em parceria com o selo polonês Bocian Records. E agora estamos
partindo pro Digipak com encarte, tanto de Anganga quanto de Niños
Heroes. Para 2016. Na realidade, prensamos conforme a demanda e a
situação.”
*Repercussão
“No caso de um selo é muito difícil trabalhar com a ideia de
repercussão quando esta não incide diretamente na vendagem dos discos. Ainda
mais quando esse selo resolve trabalhar com ampliação de expectativas, e não
apenas a satisfação de demandas consolidadas. Nesse sentido, acho que nosso
trabalho é o de divulgar essas sonoridades, de agitar o espaço sonoro
brasileiro, de trazer outras frequências, volumes, timbres, linguagens e formas
de resistência e criação — assim como o de outros espaços, selos e
coletivos em que os artistas são produtores, como o Estúdio Fitacrepe, a
Desmonta e a Seminal Records, entre outros.”
ZUMBIDOR
(Santo André/ SP)
Criado pelo baterista Flávio Lazzarin (Otis Trio, Flac, Giallos)
em 2010, o Zumbidor tem tido a função de registrar e distribuir basicamente os
sons desenvolvidos pelo músico e seus parceiros. Após os primeiros títulos
terem saído em CD artesanal, o selo tem agora focado os lançamentos apenas em
versão digital, para ouvir e baixar. Lazzarin conta um pouco dessa história:
“O zumbidor nasce de uma vontade/necessidade de gravar os
impros e algumas composições esquisitas que estavam surgindo naquele momento.
Eu havia descoberto o ebay e acabei adquirindo uma plaquinha de som e 3 mics,
sempre gostei muito do universo das gravações/estúdios, aí resolvi começar a
registrar o que a gente estava fazendo... fiz um blog no wordpress e ali nascia
o Zumbidor. No começo tudo o que era feito e registrado eu já fazia uma capa e
subia. Hoje resolvi mudar um pouco essa história. Para mim ficou difícil deixar
o ZBR especialmente para o free/impro, eu acabo fazendo muitos tipos de música
com diversas bandas autorais, e vivo intensamente tudo isso. O Zumbidor acabou
ficando com a responsabilidade de agrupar todo esse material que é gerado pelas
bandas que participo.”
*Catálogo
“No começo, o Zumbidor tinha essa ideia de lançar vários
artistas, como um selo mesmo. Mas, como faço muita coisa musical durante os
dias, acabou ficando inviável a produção de sons de outros artistas, ou seja, o
Zumbidor acabou que virando um selo bem pessoal... No momento, estou apenas
lançando materiais em que eu participo. Apenas porque é assim que estou
conseguindo fazer...”
*Edições
“Esse é um ponto que está bem desorganizado. A ideia é
voltar a lançar os cassettes limitados e voltar a lançar os CD-Rs com preço
mais acessível... Camisetas, posters... Coisas que eu gosto muito de produzir.”
ESTRANHAS OCUPAÇÕES
(Recife)
Projeto de Yuri Bruscky, o Estranhas Ocupações está na ativa
desde 2010. O catálogo busca abranger registros de “noise, improvisação livre,
eletroacústica, propostas conceituais e poesia sonora”, desenvolvendo, além de
discos, publicações, objetos, registros de performances, vídeos, dentre outras
possibilidades.
“O Estranhas Ocupações foi criado por mim (Yuri Bruscky) primeiro
como uma organização pra articular concertos, distribuição de materiais etc, e
posteriormente como selo. Ao contrário do que ocorre em selos e editoras
comerciais, em que critérios como rentabilidade e expansão de mercado
consumidor são cruciais para determinar a circulação ou não das produções
culturais, eu me pauto inteiramente na ética do ‘faça você mesmo’, em que todas
as etapas produtivas se dão sem esse tipo de controle, contando apenas o meu
entusiasmo de aficionado, sem ingerências externas – comerciais, institucionais
etc. Para mim, os selos independentes são campos de mediação ligados a uma rede
de comunicação tecida entre sujeitos com interesses afins, estruturando espaços
de articulação a partir dos quais se cartografavam as vivências, experiências e
atividades realizadas por determinados artistas ou em uma dada região, e que,
salvo alguma curiosidade aqui e acolá, despertam pouco ou nenhum interesse fora
desse circuito de afinidades.”
*Edições
“Todos os lançamentos do selo são ‘físicos’. As versões
digitais são disponibilizadas como forma de difusão. Em 2016, pretendo manter o
foco em Cds, vinis e fitas, além de incrementar o lançamento de publicações
(fanzines, catálogos, brochuras etc), com ênfase na produção experimental
latino-americana.
“Sendo um selo mantido por uma única pessoa e considerando
minhas limitações financeiras, a lista de lançamentos ‘em espera’ só tem
aumentado. Digo, de artistas com os quais eu tenho interesse em trabalhar em
projetos de edição, mas ainda não tenho os fundos para tanto. De todo modo, é
importante estar aberto à possibilidade de novas escutas e ao intercâmbio de
referências com outras pessoas. Sendo um selo feito por e para aficionados,
essa é uma parte extremamente relevante de tudo isso.”
SEMINAL RECORDS
(Belo Horizonte/ Rio/ Curitiba)
O Seminal Records surgiu, em 2013, como um projeto de
músicos com interesses afins, sendo atualmente formado por seis nomes. O selo conta
com um catálogo, entre lançamentos e relançamentos, de quase 20 títulos, em
searas como free improvisation, noise, eletrônica e eletroacústica. Marco
Scarassanti, um dos colaboradores do projeto, fala sobre:
“O selo é uma iniciativa de alguns compositores e
músicos com interesses em divulgar a cena da música experimental brasileira.
Ele começou a partir de um interesse comum e algumas conversas paralelas. Mas
de verdade, quem foi o principal articulador foi o Henrique Iwao, que juntou
num e-mail algumas das pessoas com quem ele tinha conversado sobre o assunto.
Nessa convocação primeira, a ideia era a criação de uma editora de
música/textos sobre música/ blog + uma gravadora de música experimental (com
ênfase em produtos físicos). Do grupo inicial, quem respondeu prontamente foi o
J-p Caron, que também é um dos mais ativos participantes, junto com o Henrique.
Participam desde o início também o Matthias Koole e o Ale Fenerich.
Recentemente se juntou a nós a Sanannda Acácia. O selo não tem fins lucrativos,
apenas o desejo de lançar e relançar trabalhos representativos dessa produção
instigante e diversificada, mas que não tem muita circulação. Na verdade, gosto
de pensar que o Seminal Records é um projeto de composição, em que se desenha a
partir dos lançamentos, relançamentos, novas propostas, escolhas e ações em
torno do que é lançado.”
*Seleção e repercussão
“Normalmente convidamos as pessoas que gostaríamos de ouvir,
mas aceitamos propostas e sugestões sim, desde que estejam alinhadas ao caos do
selo. A gente pede pros interessados escutarem o que tem publicado pra que
conheçam, desistam ou encarem produzir.
“Pouco a pouco tem repercutido. A Oro Molido, da Espanha,
gostou muito e nos procurou, deve sair algo em março de 2016. Por aqui, saíram
algumas resenhas e a ideia é organizarmos alguns festivais e encontros do selo,
como é o BHNoise.”
MANSARDA RECORDS
(Porto Alegre)
O Mansarda é um dos mais produtivos selos em atividade.
Surgido em 2012 de uma parceria entre Diego Dias e Gustavo Bode, o selo já
conta com 68 lançamentos, isso porque se foca em projetos de seus criadores
e músicos próximos. Segundo Diego Dias:
“Fazíamos algumas sessões e queríamos ter total controle
sobre nossas gravações. Em 20 meses lançamos 50 discos, nossos e de pessoas ao
nosso redor que foram surgindo, interessadas em free improv/ free
jazz/ experimental. Em 2014, diminuímos o ritmo, mas chegamos ao lançamento 65.
2015 foi um ano parcimonioso. Recentemente lançamos o disco de número 68,
‘Ostracismo’, um de meus vários duos com Michel Munhoz.
“Os lançamentos da Mansarda ocorrem somente por convite. No
passado, avaliamos algumas sugestões de amigos próximos, que renderam ótimos
resultados, mas nossa ideia é mantermos fechada mesmo.”
*Repercussão
“No início, a Mansarda tinha milhares de downloads, que
foram baixando com o tempo. Também, lançávamos 25 discos ao ano, fazíamos
bastante barulho! Fomos diminuindo a intensidade de lançamentos e divulgando
apenas em nossa página na internet. Não recebemos muitas resenhas e
temos pouquíssimo feedback... Desmotiva um pouco, mas seguimos. Ornette
dizia ‘Esta é a nossa música’, e acreditamos nisso. Quem segue a página
recebe as atualizações, e pode ouvir tudo gratuitamente. A Mansarda
continuará em 2016, com alguns lançamentos, apenas. Coisas mais focadas,
específicas. Temos um bom catálogo para ser explorado, música para
se retornar e ouvir de novo!”
SUBMARINE RECORDS
(São Paulo)
Desenvolvido por Frederico Finelli, que também comanda a
produtora Norópolis, o Submarine iniciou suas atividades em Belo Horizonte em
1998. Depois, se estabeleceu em São Paulo. Dando preferência por lançamentos
físicos (CD, vinil), o selo conta com mais de 30 títulos editados, dentre
diferentes projetos ligados a nomes conhecidos como Rob Mazurek e Guilherme
Granado. Conversamos com Finelli:
“A ideia sempre foi colocar na rua lançamentos de bandas do
cenário independente musical que eu gostasse, sem se preocupar e nem saber
exatamente sobre mercado e essas coisas. Na época começou com uma coletânea com
bandas nacionais e algumas internacionais dentro do universo que circulávamos e
ouvíamos (punk rock, hardcore, post punk, lo-fi...). Daí, na virada de 98/99,
conheci o Hurtmold, que estavam divulgando uma fitinha cassete e a gente se
conhecia (devido a relações de amigos, shows, fanzines etc) e iniciamos um
corre, e nessas estamos juntos até hoje. Nesses quase 18 anos de selo são mais
de 30 títulos e agora temos mais 4 para lançar no início do ano que vem. Estou
sempre ouvindo o material que chega pra mim e também vou atrás de conhecer uma
coisa ou outra que me chama atenção, mas no geral tenho trabalhado com bandas
dentro da órbita Submarine Records/ Norópolis. Mas, por exemplo, o Elma
entra nesse exemplo de banda que não estava necessariamente na órbita, conheci,
fui ouvindo mais, vendo shows e quis lançar o álbum deles.”
*Edições/ formatos
“Tenho um registro lançado totalmente digital, um EP do Bodes
& Elefantes chamado ‘Out Takes’, de 2008. Lançei e disponibilizei
totalmente gratuito.... inclusive com a capa pra quem quisesse imprimir etc...
foi legal a experiência, muitos downloads. Mas não tenho muito interesse
em lançar puramente digital, acho que nesse formato/plataforma, mais do que nunca,
os próprios artistas, bandas, produtores podem lançar né... tá tudo mais na
mão. E eu enquanto selo gosto muito do registro físico... vinil, cd, fitinha
cassete... encarte, artes... o digital realmente não me causa. Daí é isso,
lanço o físico e disponibilizamos o digital, pra venda ou pra baixar... mas não
tenho mesmo vontade de lançar somente digital.”
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e música para o Valor Econômico. Também colabora com o site português
Jazz.pt. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe
Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)