O trio de piano-baixo-bateria é um dos formatos clássicos e
mais explorados no universo jazzístico. Dessa forma, sempre impressiona quando
surgem propostas novas a partir de tal formação, como é o caso de Anfitrión,
estreia do trio argentino SLD.
Formado em meados de 2013 em Buenos Aires, o SLD Trío apresenta
três nomes bem ativos na cena contemporânea argentina. No piano, Paula Shocron ;
no baixo, Germán Lamonega ; e na bateria, Pablo Díaz – "SLD" vem das
iniciais dos sobrenomes dos músicos. A proposta do grupo, segundo Díaz, é a de
trabalhar com diferentes abordagens criativas sempre utilizando a improvisação
livre como centro de desenvolvimento para a obra. A experiência dos envolvidos –
apesar de relativamente jovens, Shocron e Díaz têm já várias gravações no
currículo – faz com que essa criação se revele bastante segura e precisa:
tatear novos territórios, mas sabendo como melhor explorar cada rumo escolhido.
O som do trio se mostra bastante uno, sem protagonistas, com os três
instrumentistas sendo vitais para a gestação de cada uma das 11 peças
apresentadas. Mesmo assim, inevitável não prestar atenção redobrada a Paula Shocron.
E não apenas por ela ser uma notável pianista. Mas pelo momento que vive em sua
trajetória. Quem conhece seu trabalho, sabe que ela tem uma veia jazzística
bastante acentuada, exibida desde seu primeiro trabalho, o intimista álbum solo
“La Voz que te Lleva”, de 2004. Entre seus vários registros, não são poucos os
trios, como “Serenade in Blue”, “Our Delight” e “Homenaje”, mas que testemunham
um lado com traços pós-bop mais acentuados. Assim, vê-la envolvida com a
improvisação livre – que tem marcado suas investidas mais recentes, como no
projeto “Imuda”, que criou ao lado da dançarina Laura Monge para explorar
possibilidades improvisativas e de interação entre artes, sempre agregando novos
parceiros – é bastante empolgante, pois ela chega nesse extremo com uma bagagem
musical realmente sólida: nada é gratuito em sua arte.
Em recente entrevista ao jornal La Nación, ela
disse: “Querría que la música fuera cada vez más inclusiva, que no se limitara
a un estilo, que no calzara en una etiqueta. Somos un montón de perspectivas
todas juntas. Si sacamos las casillas, todas esas perspectivas pueden convivir
e interactuar”.
E é esse o foco que norteia “Anfitrión”.
O álbum traz 11 faixas, improvisos coletivos (exceção a “Firuletes”,
baseada em composição de Díaz) que formam um todo, sendo que a obra poderia ser
encarada como uma suíte dividida em várias partes, com cada uma derivando e
complementando a outra. Gravado em 26 de setembro de 2014, Anfitrión inicia e
termina de modo mais contido, como se descortinasse – e depois fechasse – esse
particular palco (o que se expõe nele, melhor dizendo) aos nossos sentidos. No
centro disso, ondulações de lirismo, tensão e liberdade sonora, com o trio
destilando momentos por vezes inquietantes, como o solo de piano de “La Novia”,
que domina grande parte da peça, num crescendo perturbador que parece
impossível de ser concluído e nos arrasta de maneira inevitável. Na sequência, somos
apresentados a um tom distinto do trio, sendo “24 horas” uma faixa marcada por
certa dança ritualística conduzida pelo baixo bailante de Lamonega e o pulso de
Díaz, por entre os quais surge um toque repetitivo e inebriante do piano. Essa
faixa soa como uma longa introdução a “Embudos”, em que somos surpreendidos
pela voz de Shocron, que surge com um poema-improviso, jogo de palavras ao
acaso (... magnitud, mente, novedad, entrecruces, experimento... lluvias,
ansiedad, trabajo...) que rasgam as linhas traçadas por baixo (embalado pelo
arco) e percussão, num processo encantatório
– interessante notar que Shocron, além de explorar técnicas expandidas ao
piano, tem testado possibilidades com voz e percussão.
Apesar da unidade do álbum, “Embudos” soa como o fim de uma
primeira parte (poderia encerrar o lado A de um vinil). A partir daí, começa
uma suíte (ou uma subsuíte, se pensarmos em Anfitrión como um todo uno),
chamada “Retribuciones”, que domina o espaço entre as faixas seis e dez, sendo
que cada um desses temas é nomeado por uma sigla, que se revelam homenagens a
músicos importantes para o trio, como “R.C.” (Roy Campbell), “W.P.” (William
Parker) e “D.J.” (Darius Jones). Desse
conjunto, “W.P.” é a mais explosiva. Abrindo com uma densa linha de baixo, logo
é sacudida por uma fragmentada melodia circular do piano, que ganha cada vez
mais intensidade com a bateria pulsando de forma quebradiça, em um processo que
atinge seu máximo lá próximo aos seis minutos, quando o teclado vai saindo de
cena e Díaz contendo a batida, preparando a entrada de “R.M.”, que
marca uma virada brusca, muito por Shocron passar a destilar sons como que extraídos
de uma harpa, levando os sentidos a outras searas.
Anfitrión é uma obra surpreendente e bem realizada, fruto de uma
feliz comunhão discursiva e expressiva entre os músicos, que nos convidam a ouvi-la sempre uma vez mais, em busca de algo que talvez ainda não tenhamos captado.
Completando o projeto, o encarte tem texto de Steve Dalachinsky, poeta de Nova
York conhecido por suas parcerias com músicos do free, e a capa traz foto de
Peter Gannushkin, hoje o principal fotógrafo da cena.
ANFITRIÓN *****
SLD Trío
Independente
(Photo: Catu Hardoy)
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e música para o Valor Econômico. Também colabora com o site
português Jazz.pt. É autor das liner notes dos álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)