A cena free jazzística e improvisada de Portugal está entre
as mais intensas e produtivas do cenário contemporâneo. Não é pequeno o volume
de discos de/com músicos de lá que tem sido editado continuamente mundo afora.
Trazemos aqui alguns novos exemplares portugueses que merecem ser ouvidos e descobertos.
Com músicos geniais à frente de qualquer um dos instrumentos centrais do jazz, tem-se criado em Portugal uma variedade ampla de sonoridades dentre as mais inventivas e estimulantes da atualidade. Além disso, o país conta com um dos festivais contemporâneos mais importantes de free music, o Jazz em Agosto, e apresenta uma série de selos discográficos dedicados a esse universo (Clean Feed, JACC, Creative Sources, Cipsela, Headlights, Shhpuma...), que têm sido fundamentais para o registro e a divulgação da música feita por artistas portugueses. Presente no cenário contemporâneo com um peso respeitável, a free music de Portugal ainda é pouco conhecida e divulgada no Brasil. Basta ver que a vinda de músicos de lá para tocar em nosso país ainda é esparsa, mesmo rara. Nos últimos anos, tivemos a oportunidade de ver quem? O duo Rodrigo Amado/ Gabriel Ferrandini (2013); o trio formado por Carlos Zíngaro/ João Pedro Viegas/ Abdul Moimême (2014); o Signs of the Silhouette; e a recente aparição do Oba Loba (Norberto e João Lobo). Tantos músicos e grupos geniais (Red Trio, Motion Trio, Clocks and Clouds, Manuel Mota, Susana Santos Silva, Luís Vicente, Marcelo dos Reis, Margarida Garcia, João Camões, Ernesto Rodrigues, David Maranha, Pedro Sousa, Luís Lopes etc...) ainda aguardam surgir um convite para aqui tocarem...
Com músicos geniais à frente de qualquer um dos instrumentos centrais do jazz, tem-se criado em Portugal uma variedade ampla de sonoridades dentre as mais inventivas e estimulantes da atualidade. Além disso, o país conta com um dos festivais contemporâneos mais importantes de free music, o Jazz em Agosto, e apresenta uma série de selos discográficos dedicados a esse universo (Clean Feed, JACC, Creative Sources, Cipsela, Headlights, Shhpuma...), que têm sido fundamentais para o registro e a divulgação da música feita por artistas portugueses. Presente no cenário contemporâneo com um peso respeitável, a free music de Portugal ainda é pouco conhecida e divulgada no Brasil. Basta ver que a vinda de músicos de lá para tocar em nosso país ainda é esparsa, mesmo rara. Nos últimos anos, tivemos a oportunidade de ver quem? O duo Rodrigo Amado/ Gabriel Ferrandini (2013); o trio formado por Carlos Zíngaro/ João Pedro Viegas/ Abdul Moimême (2014); o Signs of the Silhouette; e a recente aparição do Oba Loba (Norberto e João Lobo). Tantos músicos e grupos geniais (Red Trio, Motion Trio, Clocks and Clouds, Manuel Mota, Susana Santos Silva, Luís Vicente, Marcelo dos Reis, Margarida Garcia, João Camões, Ernesto Rodrigues, David Maranha, Pedro Sousa, Luís Lopes etc...) ainda aguardam surgir um convite para aqui tocarem...
Margarida Garcia e Manuel Mota (foto: Maria de Albuquerque) |
*Para destacar algo dentre o que de mais interessante tem sido
criado na cena portuguesa contemporânea, fizemos essa seleção com 10 lançamentos, álbuns de
expressões variadas que chegaram ao mercado nos últimos meses e merecem ser
conhecidos e apreciados:
CRYPT ****(*)
Margarida Garcia e Manuel Mota
Yew Recordings
Intrigante álbum do duo formado por Margarida Garcia (baixo eletrificado)
e Manuel Mota (guitarra), Crypt apresenta seis temas de desconcertante
morosidade. A obscura sonoridade do duo se desenvolve de forma quase
letárgica, com o baixo gestando densos tons, entrecortados pelas notas
pinceladas por Mota, gerando uma atmosfera sufocante (muito diz a capa do
disco!) e hipnótica. Margarida – que no ano passado lançou outro belo disco em duo
com guitarra, então com Thurston Moore – apresenta uma forma muito particular
de lidar com o baixo, tirando com o arco sons por vezes guturais, rosnados
sedutoramente sombrios e nebulosos – em “The Candle Indoors”, que fecha o álbum, encontramos
esse processo em sua plenitude. Os seis temas se desenvolvem como partes de uma
suíte, fazendo mais sentido ouvi-los em sequência. E há, nesse percurso, unidades
internas, marcadas pelos pares “Moonless I” / “Moonless II” e “Crypt I” /
“Crypt II”. A breve duração do álbum,
com cerca de 30 minutos, nos convida a escutá-lo seguidamente, movidos pela
expectativa de captar algo que parece oculto: talvez apenas presenciando essa
música ao vivo, em um ambiente como uma igreja iluminada apenas por velas, seja
possível decifrar tal criação por completo.
CASA FUTURO *****
Pedro Sousa/ Gabriel Ferrandini/ Johan Berthling
Clean Feed
Representantes da nova geração da free music em Portugal, Pedro Sousa (saxes) e Gabriel Ferrandini (bateria) têm desenvolvido um trabalho com momentos realmente empolgantes. Após o encontro da dupla com Thurston Moore no ano passado, registrado no álbum “Live at ZBD”, agora eles dividem parceria com o baixista sueco Johan Berthling (Fire!). O disco foi captado ao vivo no Culturgest, em Lisboa, em novembro de 2012, e traz o trio em ação em três faixas. “Durability” abre o conjunto sem pressa, com o sax tenor de Sousa e a percussão de Ferrandini entrando aos poucos, testando caminhos que se abrem, logo ganhando a presença do baixo, dedilhado distraidamente; a música começa a ganhar peso lá pelos três minutos e se mantém num crescendo por algum tempo, mas não hesita em retomar momentos de menor explosão. Esse esquema permeia todo o encontro e gesta passagens de grande força expressiva. É especialmente interessante as investidas de Sousa ao sax barítono (“Utility”) e difícil não enquadrá-lo como devedor de Mats Gustafsson nesse instrumento. Casa Futuro é fruto de encontro primeiro do trio e, pelo grande resultado alcançado, espera-se que não se resuma a este registro.
LIVE IN MUNICH ****
Red Trio
Astral Spirits
Um dos mais empolgantes grupos de piano-baixo-bateria da
atualidade, o Red Trio estreou em 2010 e tem editado discos em todos esses anos
desde então. Após colaborações com nomes como Nate Wooley, John Butcher e
Mattias Stahl, o trio de Lisboa aparece aqui em sua forma original, com Rodrigo
Pinheiro (piano), Hernani Faustino (baixo) e Gabriel Ferrandini (bateria).
Registrado em abril de 2014, Live in Munich apresenta dois extensos temas, um em
cada lado da fita – foi editado apenas em K7. As duas longas improvisações,
“Munich 1” e “Munich 2”, mostram a
elevada cumplicidade criativa que move o grupo, com o som sendo construído de
forma fluida e telepática, sem que nenhum dos três instrumentistas assuma espaço
protagonista: aqui, todas as vozes desempenham
papel de mesma relevância; é do encontro entre elas que se arquiteta a
desafiadora música do grupo.
PARTIALS ***(*)
Srosh Ensemble
Sonoscopia
O Srosh Ensemble é um projeto desenvolvido no Porto com o
intuito de agregar ideias e artistas interessados em improvisação, noise, manipulação
eletrônica e afins, com a perspectiva de criar “esculturas sonoras,
instrumentos não convencionais e intervenções em espaços específicos”. Partials
registra cinco temas captados no âmbito do projeto, executados por diferentes
músicos portugueses entre os anos de 2013 e 2015. Com propostas e resultados
variados, o álbum mostra uma face da música experimental feita em Portugal
além das fronteiras jazzísticas, avançando nas searas do drone e da música
concreta. Há aqui também registro mais ligado ao campo free impro, com a peça
“Vrlina”, a mais extensa e interessante do conjunto, com quase 19 minutos, que conta
com as participações da trompetista Susana Santos Silva, do baixista Henrique
Fernandes e do baterista Jorge Queijo.
SOPA DA PEDRA ****
Sopa da Pedra
Unit Records
Formado pelos portugueses João Madeira (baixo) e Miguel Mira (violoncelo) ao lado da trompetista suíça Hilaria Kramer, o trio Sopa da Pedra apresenta um trabalho realmente estimulante. Ao som quente e lírico do trompete de Hilaria se sobrepõe a por vezes complexa teia criada pelas cordas desses dois artistas que representam duas gerações distintas da música jazzística realizada em seu país. De momentos mais intensos, como em “Ebulição” e “Toca e Foge”, à contemplatividade de peças como “Tuizelinho” e “Entre Nós”, o trio seduz a escuta, nos levando por uma estimulante descoberta faixa a faixa. Há uma versão em duo do Sopa da Pedra, sem Mira, mas o grupo parece oferecer seu máximo mesmo quando atua em trio, como aqui.
The LEGENDARY STORY Of A SLUG AND a BEETLE ****
João Pedro Viegas e Paulo Chagas
Pan y Rosas
Encontro entre dois importantes reedmen portugueses, este
The Legendary Story of... mostra um pouco do que de mais interessante a cena free
impro tem produzido no país. João Pedro Viegas e Paulo Chagas mantêm a mesma
linha do projeto “Wind Trio”, que conduzem ao lado de Paulo Curado, desbravando
instigantes diálogos gestados a partir de uma variada palheta formada por
clarinetes baixo, soprano e sopranino, oboé e flauta. Os temas, apesar de
relativamente breves em sua maioria, se mostram exatos para a proposta do duo,
com a improvisação se desenvolvendo de forma precisa, sem divagações supérfluas.
CHAMBER 4 *****
Luís Vicente/ Marcelo dos Reis/ Théo e Valentin Ceccaldi
FMR
Os portugueses demonstram muito apreço às explorações
do free com cordas e diferentes combinações nesse sentido têm chegado ao
mercado. Um dos grandes lançamentos nessa seara é este Chamber 4, que traz os
portugueses Luís Vicente (trompete) e Marcelo dos Reis (guitarra acústica)
acompanhados dos franceses Théo Ceccaldi (violino) e Valentin Ceccaldi
(violoncelo). O tom camerístico, sinalizado no próprio título do álbum, marca – mas não restringe
– esse quarteto extremamente inventivo e surpreendente, que cria uma música de
elevada intensidade. Com a improvisação no cerne do conjunto, vemos momentos de
elevada voltagem avant-garde (“Some Trees”) dividindo espaço com tempos de
sufocante lirismo (“Wooden Floor”) e temas com ar mais jazz-camerístico (“Lumber
Voices”). O álbum foi registrado ao vivo
em maio de 2013, no Ler Devagar, em Lisboa. Não sei se esse foi apenas um
encontro de momento, mas espera-se que sigam se reunindo para criar mais dessa
singular beleza.
FOR SALE ****
Deux Maisons
Clean Feed
Em paralelo ao 'Chamber 4', chega este For Sale, do quarteto Deux
Maisons. Aqui temos quase os mesmos músicos do Chamber 4 em ação – Luís
Vicente, Théo e Valentin Ceccaldi –, mas no lugar da guitarra de dos Reis entra
a bateria de Marco Franco. Com trompete, violino, violoncelo e percussão, o resultado
é muito distinto. As duas casas (“Deux
Maisons”) à venda que nomeia o álbum fazem referência às origens dos
músicos (dois portugueses e dois franceses) e eles mantêm a brincadeira no nome
das peças: “Two Balconies”, “No Dogs”, “Two Living Rooms”, “No Bedroom”, “Three
Clean Bathrooms” e “Two Kitchens”. O passeio por essas dependências nos leva a
variadas impressões, entre os extremos do lirismo centrado do tema de abertura à
incandescência de “No Bedroom”. Improvisação
livre, técnicas expandidas e muita inventidade a serviço de uma música sempre
nova.
EARNEAR ****
Earnear
Tour de
Bras
O trio português Earnear, criado há cerca de três anos, lança seu disco de estreia. João Camões (viola) se junta ao pianista Rodrigo Pinheiro (Red Trio) e ao celista Miguel Mira (Motion Trio) para oito peças de caráter camerístico. Mas a ligação com a tradição erudito-camerística europeia é apenas um dos vieses que marcam esse trabalho estruturado a partir da improvisação livre. O jogo contrapontístico se revela uma peça elementar, em um processo que muito explora a espacialização e o caráter timbrístico particular do trio. Se o virtuosismo pulsante das cordas faz os ouvidos vibrarem em muitas passagens – Camões e Mira estão entre os mais inventivos em seus instrumentos –, o toque pontihista e detalhístico do piano de Pinheiro arranha com delicadeza a escuta, saindo desse conjunto belos exemplares como “Gomboc” e “Dream Theory”. Um álbum para se ouvir com atenção aos detalhes, absorvendo cada nuance e deixando os sentidos divagarem.
THIS IS OUR LANGUAGE *****
Rodrigo Amado/ McPhee/ Kessler/ Corsano
Not Two
Rodrigo Amado é um dos grandes saxofonistas europeus contemporâneos. Em mais de duas décadas de carreira, tem
desenvolvido diferentes excitantes projetos, sendo atualmente o mais relevante
o Motion Trio. Além de ser um dos pilares da música jazzística e improvisada
portuguesa, Amado tem assinado parcerias com grandes músicos da cena mundial,
já tendo gravado com Peter Evans, Paal Nilssen-Love, Jeb Bishop, Gerald
Cleaver, Dennis González, Taylor Ho Bynum, dentre outros. Neste novo This is Our
Language, Amado comanda um quarteto que conta com Chris Corsano (bateria), Kent
Kessler (baixo) e o lendário Joe McPhee (sax alto e pocket trumpet). O
encontro, agora editado pelo selo polonês Not Two, se deu em Lisboa, em
dezembro de 2012. E o resultado é brilhante. Apesar de representar diferentes
perspectivas e gerações da free music – em um extremo, está Corsano, com 39
anos; no outro, McPhee, no auge de seus 75 anos –, o quarteto se mostra uno em
torno da gestação de uma música realmente viva e desafiadora. O título remete diretamente
ao clássico “This is Our Music”, de Ornette Coleman, com o qual compartilha
também uma formação similar. Mas a música aqui criada soa diferente, atual e própria.
Amado disse em entrevista à Jazz.pt: “...além dessa homenagem a Ornette, o
título refere-se à linguagem da improvisação e ao milagre que é partilhar uma
linguagem comum, abstrata, e com ela construir formas e significados coerentes.
Uma linguagem que é comum, mas construída a partir das linguagens altamente
individualizadas e pessoais de cada músico”. E é esse caminho que somos
convidados a desbravar, levados pela sonoridade única gestada pelo quarteto,
reunido aqui pela primeira vez, mas sentindo nas entrelinhas o toque de cada um
desses instrumentistas tão experimentados. O disco abre (“The Primal Word”) em
modo mais lírico e relaxado, com algo quase bluesy no ar, em um diálogo de baixo e saxes
alto e tenor, sem bateria. Na sequência, vem a faixa-título e a coisa esquenta;
Corsano inicia os trabalhos chamando os outros músicos; enquanto McPhee assume
o trompete, Amado se arma de ataques mais furiosos – que marcarão muitas
passagens do álbum. Isso fica bem estampado em “Theory of Mind”, na qual McPhee
sai de cena e Amado conduz o trio com lampejos de fúria e muita inventividade
improvisativa. O retorno de McPhee para os dois últimos temas, focado no pocket
trumpet até o fim, eleva essa música a seus melhores momentos, fazendo deste um
dos grandes lançamentos do ano.
*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura, tendo se especializado na obra de António Lobo Antunes. Escreveu
sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do
jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e música para o
jornal Valor Econômico. Também colabora com o site português Jazz.pt