Apanhado de novidades imperdíveis da free music.
Sons de todos os cantos, experiências em várias
formas.
Ouça, divulgue, compre os discos.
WELCOME BACK ****
Irène Schweizer/ Han Bennink
Intakt Records
A pianista suíça Irène Schweizer, de 74 anos, e o percussionista holandês Han Bennink, 73, retomam uma antiga parceria neste Welcome Back. Dois dos maiores nomes da improvisação livre europeia, aqui se encontram para visitar em duo 14 temas relativamente breves (a maioria em torno de três minutos). Em meio a muitas peças de autoria própria, há algumas releituras, como “Eronel” (Monk) e “Ntyilo, Ntyilo” (Johnny Dyani). A gravação foi feita em estúdio, em abril passado. “Han and I are soul-brother and soul-sister. We have the same taste and rhythmical feelings in jazz music”, diz Irène sobre a parceria. E isso fica evidente na assombrosa cumplicidade criativa, em que piano e percussão soam como vozes complementares, unas e indissociáveis para o resultado exibido no álbum. A força centrada de peças como “Kit 4” e “Verflixt” mostra o quanto a arte desses dois veteranos ainda é uma expressão vital da música contemporânea.
WORSHIP THE SUN ****
Dead Neanderthals
Relative Pitch
O duo holandês Dead Neanderthals tem construído uma das mais
explosivas discografias na seara da improvisação livre. As mais explíctas
influências rock (grindcore, metal) dos primeiros trabalhos têm cedido espaço para
explorações mais amplas, com a dupla desenvolvendo suas ideias de forma menos
econômica, ampliando a complexidade da música criada. Neste mais recente
exemplar, que será oficialmente lançado no dia 11 de setembro, Otto Kokke (sax)
e René Aquarius (bateria) apresentam duas novas longas peças. “Worship”, com
seus quase 19 minutos, abre o disco de forma relativamente calma, ganhando
intensidade progressivamente, com o sax à frente, elevando a tensão até beirar
o insuportável, enquanto a bateria mantém o pulso de forma quase linear,
criando uma linha horizontal para os ácidos devaneis do sopro. A segunda faixa,
“The Sun”, traz 17 minutos mais diretos, com o duo entrando em cena já em alta
voltagem. O que falta ainda para alguém ter a ideia de trazer a dupla para
tocar por aqui?
SAXOCTOPUS ***(*)
Saxoctopus
Raw Tonk
Quartetos formados apenas por saxofones já renderam grandes
momentos na música, como os protagonizados pelo Rova, o WSQ ou o mais jovem
Battle Trance. Aqui, dobra-se a aposta: como sugere o nome, Saxoctopus é um grupo
europeu formado por oito saxofonistas. Nesse seu primeiro registro, o octeto
executa cinco temas, trabalhando o inusitado colorido a partir de três
registros basilares: estão presentes os saxes alto (3), tenor (3) e barítono
(2). A improvisação coletiva é o núcleo das explorações, ficando os solos em
segundo plano. A construção polifônica do grupo gera alguns momentos realmente
excitantes, com destaque para “Mantra”, de Colin Webster – livremente inspirada
em Chant, de Roscoe Mitchell.
DET KRITISKE PUNKT ****
Virginia Genta/ David Vanzan/ Dag Stiberg/ Jon Wesseltoft
Feeding Tube Records
Energy music é o que faz a força da dupla italiana Virginia
Genta (sax) e David Vanzan (bateria), que aqui se junta a Dag Stiberg (sax) e
Jon Wesseltoft (guitarra). A apresentação do quarteto foi registrada em 2012,
em Oslo, e traz cerca de 35 minutos de música verdadeiramente incendiária. Em cinco
partes, Det Kritiske Punkt metralha os tímpanos com uma sequência de ataques explosivos
e enérgicos, tão quentes quanto os melhores momentos do Jooklo Duo – mas com
reforço extra. Com execeção da parte III, que traz os únicos momentos relativamente
contidos, este LP (em edição limitada de 150 cópias) é fúria ruidosa de ponta a
ponta.
UNKNOWABLE ****
François Carrier/ Michel Lambert/ Rafal Mazur
Not Two
O saxofonista canadense François Carrier, em turnê com o
sempre presente baterista Michel Lambert, pela Polônia em junho de 2014, se
uniu a Rafal Mazur (bass guitar) para uma apresentação que agora sai em disco.
São seis improvisações, bem em linha com o trabalho que Carrier vem
desenvolvendo ao lado de Lambert nos últimos anos. A adição de Mazur traz um
colorido extra, mas sem interromper o fluxo telepático – de quem toca junto há
tempos – entre saxofonista e percussionista. Os temas se desenvolvem de forma
simples e direta, sem grandes picos explosivos ou solos prolongados, sendo a
improvisação coletiva o mais relevante para a música do trio – apesar do sax
estar continuamente em evidência. O free relaxado de Carrier, por vezes até
lírico, está bem representado em “Be Young Byond” e na faixa-título. O músico se
arrisca também no “chinese oboé”, mas seus momentos maiores estão mesmo no sax
alto.
EXTRA ROOM ****
Daniel Carter e Federico Ughi
577 Records
O sax alto Daniel Carter é um dos grandes músicos surgidos
nos anos 70 que talvez receba menos atenção do que sua obra merece. Nesse duo
com o mais jovem baterista Federico Ughi (que nasceu quando Carter já tocava),
o saxofonista tem espaço para apresentar toda a amplitude de sua música; além
do sax alto, explora tenor e soprano, flauta, trompete e até, ligeiramente, o piano.
O duo trabalha junto há bastante tempo – gravaram a primeira parceria em 2001,
“Astonishment” – e a intimidade sonora entre eles é palpável. Tudo soa com uma
liberdade relaxada, sem picos abruptos ou marcas explosivas, entre momentos
mais contemplativos, como “Gipsy Driver”, que abre com uma divagante melodia na
flauta, e pontos de beleza melancólica, como o sax tenor de “New Shoes”. Extra
Room é composto por dois volumes, totalizando 19 peças – um representativo painel
da criação de Carter.
VASO ****
Vaso
QTV
Vem do Rio este novo inquietante quarteto. Improvisação
livre e ruidosidades marcam as três faixas que compõem Vaso, um projeto que
traz nomes já conhecidos da cena, como Cadu Tenório (Victim!, Sobre a
Máquina) e Felipe Zenícola (CCP). Além dos instrumentos, acústicos e
elétricos, o quarteto utiliza o ambiente e o acaso como parte do processo de
criação artística, fazendo com que as três faixas que compõem o álbum se
transformem em um campo de imprevistos auditivos, que podem crescer
convulsivamente (como no centro da faixa II, com saxes e cordas em múltiplos
ataques) ou se embrenhar por vias de ruidosidades fragmentadas (como na faixa
I). Além de Tenório (violino, samples) e Zenícola (baixo), completam o grupo
Alexander Zhemchuzhnikov (sax tenor) e Paulo Dantas (soprano, guitarra).
SOLOS BIMHUIS ****(*)
Joe Morris
Relative Pitch
Joe Morris é o mais impressionante guitarrista em atividade.
Ouvi-lo significa sempre descobrir um manancial de sons desconcertantes, uma
forma surpreendente de reencontrar um instrumento já explorado do avesso no
rock e no jazz. Morris não editava um disco de guitarra solo desde
“Singularity”, de 2001. E agora volta com esse registro ao vivo, fruto de dois
concertos realizados em Amsterdã. São seis improvisações, em que sua guitarra
limpa – ele não é adepto de pedais e efeitos – arrasta-nos por vias
labirínticas em que cada passo é sempre um mergulho no desconhecido. Sua
complexa arquitetura parece não deixar brechas para o acaso, com cada nota
fazendo sentido nessa narativa conduzida por uma sutileza transgressora. Peças
como “Dream” e “See” mostram o porquê de a música de Morris ser única.
FOR DUKE ****(*)
Matthew Shipp Trio
Rogue Art
O pianista Matthew Shipp comanda um dos grupos fundamentais
surgidos na última década, tendo editado uma sequência de grandes álbuns. Seu mais
recente capítulo é esta homanegam a Duke Ellington, que conduz ao lado de
Michael Bisio (baixo) e Whit Dickey (bateria). Em meio a releituras
intensamente criativas de temas como “Solitude”, “Mood Indigo” e “Prelude to a
Kiss”, Shipp apresenta também novas peças suas, dedicadas ao mestre: “Tone Poem
to Duke” e a tensamente contagiante “Dickey Duke”, marcada por um pulsar
repetitivo muito característico de Shipp. Provavelmente o melhor momento do
conjunto seja a visitação à clássica “Take the a Train”. Shipp parte do tema
inicial da peça – que será repetido várias vezes –, mas não se detém nele;
abrindo o desenvolvimento da faixa a um território próprio do trio, fazendo com
que o tema de Duke se embrenhe entre a criação do grupo, essa “Take the a
Train” ganha uma tensão crescente, que encontra seu apogeu lá pelos seis
minutos, com o desfecho do solo de piano. Genial.
INDIGO ***(*)
Jorge Torrecillas Ensamble
STM
O saxofonista argentino Jorge Torrecillas protagoniza com
seu Ensamble, que conta com trombone, baixo e bateria, este Indigo. Álbum de
estreia do grupo formado em meados de 2011, apresenta um pós-bop bem elaborado,
aberto a influências contemporâneas, com amplos espaços para criativos
improvisos. São seis temas próprios e uma releitura de “Pannonica”, de Monk. O
trombone de Franco Espíndola é um dos pontos fortes do quarteto, como bem exibe
a peça “Tu virtud te condena”. Outros destaques do álbum são “Circulación
Vertical”, com o contagiante diálogo entre sax e trombone, e a bela soturna
(quase) balada “La noche más larga”.
SOL[os] ****(*)
Marcio Mattos
Emanem
O baixista e violoncelista carioca Marcio Mattos mostra toda
a ampla gama expressiva de sua criação neste álbum solo. Pioneiro da free
improvisation no país, Mattos, radicado em Londres desde os anos 70, tem tocado
pouco por aqui e é muito instigante vê-lo em um novo trabalho, tão intenso e
coeso como este. São dez peças registradas entre o fim dos anos 90 e 2010, em
que se reveza entre baixo e violoncelo, mostrando um período relativamente amplo
de suas investidas nos últimos tempos. Em alguns temas (“Faculae”, “Solwind”),
Mattos também faz uso da eletrônica, ampliando a atmosfera sonora gestada por
arco e pizzicato. As peças são relativamente curtas, com execeção da última,
“Prominence”. Sendo a mais recente, gravada ao vivo em maio de 2010,
“Prominence”, com seus 20 minutos, também é a mais complexa do conjunto. Aqui
Mattos usa contrabaixo acústico e eletrônicos, criando uma peça de densa
fatura, oscilando ataques vigorosos com passagens pontilhísticas em que o
detalhe do toque é o que mais importa. O desafio de ouvir um disco de baixo (ou
celo) solo se revela aqui uma experiência ímpar.
PULVERIZE THE SOUND *****
Pulverize The Sound
Relative Pitch
A cada novo projeto, o trompetista Peter Evans tem
conseguido surpreender, sempre com visadas frescas e uma inventividade
inesgotável. Com o trio Pulverize The Sound, formado ao lado de Tim Dahl (baixo
elétrico) e Mike Pride (bateria), não é diferente. Neste álbum de estreia, o
que vemos é uma música intensamente viva, que mantém os sentidos em alerta
máximo, inebriados por sons desconcertantes. Dahl é um dos pontos elevados, com
seu baixo destilando coisas inimagináveis, sons “pulverizados” em meio a uma
profusão de pedais e efeitos, com a bateria muito rock de Pride e o trompete
fulminante de Evans. “Being dark is easy” chega a ecoar algo das mais obscuras
investidas do PainKiller – mas com a genialidade de Evans, e não a de Zorn, no
comando. Já o pulso repetitivo conduzido pelo baixo na abertura de “Pools” é
daqueles que ativam sentidos adormecidos. Vale mencionar também a vacilante
evolução de “Unison”, em que Evans, bem a seu modo, solta fragmentos de uma
melodia que nunca se completa, quebrando as frases pelos primeiros quatro
minutos até adentrar uma linha mais incisiva e mergulhar em um solo
incendiário. Pulverize The Sound nos faz inevitavelmente pensar: qual o próximo
passo de Evans?
*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura, tendo se especializado na obra do escritor António Lobo Antunes.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; também foi
correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e música para o jornal Valor Econômico