Não são poucos os álbuns esquecidos gestados no território
da free music. Muito material editado nas décadas de 1960, 70 e 80 de
forma independente ou por pequenos selos de vida breve jamais recebeu reedição.
Não fosse o trabalho de divulgação por meio virtual, estariam fatalmente esquecidos...
Por Fabricio Vieira
Pensando em quantos bons discos merecem ser redescobertos, destacamos alguns álbuns importantes estética e
historicamente, já fora de catálogo, lançados nas décadas de 60 e 70, e que nunca receberam uma nova edição. A
audição desses discos – criações de músicos vindos de Suécia, Finlândia, Alemanha,
Egito, Israel, Bélgica, EUA, Japão –, que são apenas alguns exemplos dentre
muitos outros possíveis, apresenta novas possibilidades de se encarar e
desbravar a free music... Free the Jazz!
The Dragon Suite
Marc Levin
Savoy
1967
O flautista e trompetista Marc Levin deixou poucas
gravações, sendo este The Dragon Suite seu primeiro trabalho. Levin estudou com
Bill Dixon (que produziu este álbum) e se mudou de NY para a Europa em meados
dos anos 70, se estabelecendo na Dinamarca. Seus últimos registros datam da
década de 1980 – em um fórum, conta-se que passou a trabalhar com psicoterapia.
Para The Dragon Suite, convocou um quinteto – que chamou de “Free Unit” – que
trazia o trombonista sul-africano Jonas Gwangwa, Calo Scott (violoncelo), Frank
Claiton (bateria) e o grande baixista Cecil McBee. O disco saiu nos EUA (Savoy) e na França (BYG) e depois foi esquecido. O que se ouve aqui é um
free mais contemplativo, nada da energy music novaiorquina de então.
Nature’s Consort
Nature’s Consort
Otic Records
1969
Quinteto do qual há apenas este registro, o Nature’s Consort
trazia uma formação clássica: Mark Whitecage (saxes), James Duboise (metais),
Bobby Naughton (piano) Mario Pavone (baixo) e Laurence Cook (bateria). Apesar
de não ser indicado um líder, as composições são quase todas de Naughton. São
cinco faixas, com momentos mais enérgicos proporcionados apenas pelos solos de
sax e metais – a música soa, de um modo geral, menos quente do que se pode
esperar de NY naquela década. A adição do piano elétrico em alguns momentos,
como na faixa “Nital Rock”, muda a atmosfera, gestando algo mais grooveado. O
resultado geral pode não chegar a ser brilhante, mas tem momentos fortes e
mostra um grupo de músicos jovens buscando um caminho diferente, arriscando a
não apenas seguir seus mestres. Do grupo, Whitecage e Pavone seriam os mais
frutíferos, com maior repercussão no futuro, se mantendo em atividade até
hoje.
The Third World
Abdul Hannan
Third World
1968/71
Este é um disco que bem representa o espírito DIY que sempre
acompanhou o universo do free jazz. Liderado pelo obscuro saxofonista Abdul Hannan
(nascido Joel Hannah), o disco foi editado de forma independente, tendo sido
gravado na casa dele. São três temas, registrados em duas ocasiões, em 68 e 71.
O núcleo do álbum é a peça “Awareness”, que aparece em duas partes, totalizando
mais de 25 minutos. De bônus, há a mais breve “Wind and wood, band of Steel”
(gravada com a Silver Star Steel Orchestra).“Awareness” é executada por um
sexteto, com saxes, piano, violino, baixo e percussão. A música é construída
tendo por base sopros rasgantes e elementos percussivos afros, permeada por
algum lirismo vindo do piano, soando muito em sintonia com o que Pharoah Sanders
vinha produzindo no período. Além da viva música, há um interesse extra: a gravação
é a primeira em que o saxofonista David S. Ware aparece.
Orangutang!
G.L. Unit
Odeon
1969/70
Esse clássico do free sueco foi editado na época por um
grande selo, mas nem por isso voltou a catálogo. A big band comandada pelo
saxofonista Gunnar Lindqvist (1937-2003) apresenta quatro temas, sendo os três
primeiros (“Waves”, “Experience X” e “Orangutang”, que formam uma pequena
suíte) registrados em março de 69, compondo o lado A do LP. Virando o disco,
encontra-se a última faixa (em três sequências: “Freedon-Equality-Brotherhood”),registrada
um ano depois, com um colorido bem distinto. Estão aqui presentes alguns dos
nomes mais expressivos do free da Suécia, como o percussionista Sven-Ake
Johansson e os saxofonistas Bernt Rosengren e Bengt ‘Frippe’ Nordstrom. E o
resultado é sensacional. A criação coletiva é o que dá o tom ao trabalho – com efeitos diferentes, pois não
são exatamente os mesmos músicos que participam das duas sessões. O jogo entre os
vários sopros (saxes alto, tenor, soprano, barítono, trompete, clarinete,
flauta) é o forte da música, assumidamente ligada às concepções de Don Cherry. Lindqvist,
que também era produtor e compositor, aparece aqui tocando tenor, clarinete,
flauta e piano, além de assinar as faixas – apesar de o teor do conjunto ser a
improvisação coletiva.
Heliopolis
Cairo Free Jazz Ensemble
Goethe Institut
1970
Comandado pelo baterista egípcio Salah
Ragab (1936-2008), este é um incrível exemplar do free fora de seu centro
habitual. Ragab deixou o exército de seu país nos anos 60 para se dedicar à
música, tendo criado seu primeiro grupo de jazz naquela década. Depois se
interessou pelo universo do free, sendo Heliopolis seu grande registro. Para
este trabalho, ele reuniu uma big band formada por muitos sopros, percussão e
piano, criando uma música de intensa vitalidade e colorido por vezes exótico.
São apenas três extensos temas, indo de uma peça mais estruturada (“Turnus”) à improvisação
enérgica mais direta (“Liberty for Iratilim”). Devedor de Sun Ra e sua Arkestra,
Ragab chegou a subir no palco com eles, em meados dos anos 80.
That Nigger Music
Les Oubliés de Jazz Ensemble
Touché
1972
É difícil encontrar informações sobre esta gravação. Quando
alguém se lembra do álbum, é muito mais pela participação de Sonny Simmons
(sax) e Barbara Donald (trompete) no grupo que contou com onze músicos. Apesar
de, sem dúvida, serem eles as principais referências, apenas o baterista
William ‘Smiley’ Winters é destacado na capa do disco –e este não soa como um
álbum de Simmons/Donald. Ou seja, se alguém comandou essa sessão em 72 foi
Winters. O conteúdo é muito grooveado, sem longos solos ou
intensidade free. O disco abre com uma longa introdução conduzida pelo
canto-fala de Marie Braure, acompanhada apenas por baixo, bateria e piano
elétrico. Somente passados uns oito minutos, é que os instrumentos de sopro
entram em campo, ecoando o tema cantarolado por uma voz masculina – difícil se
despregar da melodia depois. Como logo dá para sentir, não se trata de um
trabalho pesado. Mas não menos contagiante por isso.
Sound Craft 75 – Fantasy for Orchestra
The Universal Jazz Symphonette
Anima
1975
A The Universal Jazz Symphonette não foi um grupo regular,
tendo sido organizado pelo baixista Earl Freeman para a exibição deste seu
projeto. A orquestra montada para aquela noite de fevereiro de 75, na
Washington Square Methodist Church, em Nova York, trazia jovens que depois se
tornariam referência na free music, como William Parker, Daniel Carter e Billy
Bang. Registrado ao vivo, Sound Craft 75 apresenta três composições de Freeman,
sendo seu trabalho mais ambicioso. Além de mais de 25 instrumentistas, subiram
ao palco dançarinos, criando o que deve ter sido um complexo espetáculo – infelizmente
não há imagens do evento. A música aqui é grandiosa, improvisação coletiva de
densas massas sonoras, com os sopros sendo privilegiados (ao menos soa assim na
gravação, que não é muito boa...). Em contraste com certa caoticidade da faixa
de abertura, “Nemesis”, o lado B começa em outro tom, com uma voz feminina
recitando um texto (de cunho religioso), enquanto ouve-se alguns rumores dos
trompetes e saxes ao fundo. Mas essa calmaria não resiste muito; lá pelos três
minutos, a intensidade já terá crescido e tomado novamente conta do
processo.
Concrete Voices
Evolution Ensemble Unity
Alm Records
1976
O Evolution Ensemble Unity foi um trio de instrumentistas
japoneses que surgiu em 1975 e deixou apenas este registro. O grupo era formado pelo saxofonista Mototeru
Takagi (1941-2002), Morio Yoshida (baixo e percussão) e o trompetista Toshinori
Kondo – aqui estreando, ele que se tornaria um dos músicos asiáticos mais
conhecidos do free. O álbum é fruto de duas sessões ao vivo: no lado A, cinco
faixas captadas em novembro de 76; no lado B, apenas um extenso tema, a
faixa-título assinada por Kondo, de setembro do mesmo ano. Improvisação livre é
a palavra de ordem, mas as duas faces do vinil oferecem percepções um pouco distintas.
No lado A, em meio a composições próprias, são revisitados dois temas clássicos,
“Brilliant Corners” (Monk) e “Bone” (Steve Lacy), de forma bastante
desconstruída, claro. Junta-se a essas releituras “Stone Blues”, de Takagi,
talvez uma homenagem à herança jazzística absorvida pelos músicos
japoneses. Já no lado B, são cerca de 25
minutos de improvisação livre, onde a ordem é deixar a escuta divagar sem
amarras.
Live at Environ
INTERface
ReEntry Records
1977
O pianista belga John Fischer chegou a Nova York nos anos
70, atraído pela cena loft que então se formava. Fischer, nascido em 1930 na
Antuérpia, logo abriu em NY seu próprio espaço, o Environ, que, mesmo sendo
menos incensado que o Studio RivBea ou o Ali’s Alley, foi um local importante
para músicos e artistas na época – também funcionava como galeria de arte. Em
seu entorno, se uniram músicos como Mark Whitecage (saxes) e Perry Robinson
(clarinete). E foi com eles que Fisher montou seu mais famoso projeto, o
INTERface, com o qual fez cinco registros nos anos 70. Este álbum, gravado exatamente em
uma gig no Environ, mostra o quinteto com Fisher, Whitecage, Robinson, Rick
Kilburn (baixo) e o grande Phillip Wilson (1941-1992) na bateria. A eles se
juntou um convidado especial, o sax-barítono Charles Tyler. No melhor clima loft jazz, os músicos mostram sete temas, com resultados e formações
distintas. O disco abre, por exemplo, com “Quartet”, onde apenas Tyler assume os
sopros. Whitecage e Robinson aparecem no tema seguinte, a quase-balada “A Day
in May”. Já “Solo-Poum” é uma das intervenções vocais de Fisher (em seus
discos, sempre há uma peça desse tipo, da série “Poum”). O sexteto todo em ação
pode ser apreciado em “Tolls”, que fecha o álbum trazendo os melhores momentos
do conjunto.
Celeste
Michel Pilz
Trion
1978
O grande clarinetista-baixo alemão Michel Pilz é um dos mais
discretos nomes da cena free impro europeia. Membro da Global Unity Orchestra e
do quinteto de Manfred Schoff, Pilz, nascido em 1945, tem relativamente poucos
registros como líder. Um de seus melhores trabalhos é Celeste, gravado em
março de 1978. Acompanhado do baterista Uwe Schimitt e de Buschi Niebergall (baixo), Pilz exibe pontos amplos de sua música,
oscilando beleza contemplativa com dinâmica e agilidade. Da esfera sombria de
sua música, emergem as faixas “Celeste” e “Linde”; caso distinto é “Telep”, que
mostra a força e a pegada mais arisca de sua improvisação. Dono de colorido que
varia entre o robusto e o lírico, Pilz faz deste Celeste um disco
realmente revelador e central em sua obra, injustamente pouco incensada. Belamente
soturno.
Ernst-Ludwig Petrowsky
Ernst-Ludwig Petrowsky
Amiga
1978
O free jazz na Alemanha Oriental (“DDR”) demorou um pouco
mais para chegar ao ocidente que a produção realizada do outro lado do muro. O
saxofonista Ernst-Ludwig Petrowsky foi um dos pioneiros do free na Alemanha Oriental, tendo formado o seminal grupo Synopsis (depois Zentralquartett) ao
lado de Conrad Bauer, Ulrich Gumpert e Gunter Sommer. Aqui Petrowsky aparece em
diferentes formações, entre trios e quintetos, em gravações realizadas entre
junho de 74 e novembro de 77. Além de Gumpert e Sommer, podemos ouvi-lo tocando
com Klaus Koch (baixo), Jochen Gleichmann (trompete), Hans Rempel (piano),
entre outros. De um lado do disco, estão seis curtas faixas, onde pode-se apreciar
o som do saxofonista em contextos diversos; mas o melhor fica para o lado B,
formado apenas por um extenso tema, “Wandertag in Freiberg”, captado ao vivo em
março de 76, em que Petrowsky se reveza entre tenor e alto, acompanhado por
Koch (baixo) e Sommer (bateria), mostrando que é de fato um saxofonista de peso,
enérgico e grande improvisador. Uma vital introdução ao universo de Petrowsky,
músico fundamental que talvez tenha acabado sido injustamente sombreado demais pela
grandiosidade de um outro saxofonista alemão...
Stockholm Augusti
Lokomotiv Konkret
Urspar
1978
O saxofonista israelense Dror Feiler comanda este grupo criado
na Suécia, onde ele se radicou nos anos 70. Bateria, piano, sax e dois trombones
formam o núcleo sonoro deste álbum de estreia do Lokomotiv Konkret, que
editaria ainda outros discos até os anos 90, com algumas mudanças na formação. Neste
Stockholm Augusti podemos ouvir algumas das faces do Lokomotiv Konkret, que
vai da energy music centrada dos temas “Harakiri” e “Distorsion 1”, que abrem e
fecham o álbum, respectivamente, à improvisação livre mais expansiva, como na
longa (quase 14 minutos) “Sparvagn Abstrakt”. Feiler, que passou discretamente
pelo Brasil em julho, durante o FIME, comandaria também outros destacados
projetos, como o “The too much too soon Orchestra”, no qual Mats Gustafsson
debutou em 1988.
*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura, tendo se especializado na obra do escritor António Lobo Antunes.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; também foi
correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e
música para o jornal Valor Econômico