Brötzmann: variações solísticas




Quem acompanha a obra de Peter Brötzmann sabe que ela cresce de forma rápida e contínua – raro o ano em que o mestre alemão não contempla seus ouvintes com um novo título. Esse prolífico processo criacional ganha agora o reforço de Münster Bern, álbum solo editado pelo suíço Cubus Records.




O formato solista está presente em todas as fases da obra de Peter Brötzmann. E, mesmo que essa forma de expressão não chegue a ser tão vital no conjunto de seu trabalho quanto o é para Evan Parker, Anthony Braxton ou Kaoru Abe, a sua face solística tem recebido maior importância nos últimos tempos, com Brötzmann se apresentando – e editando álbuns – sozinho com mais assiduidade. Neste ano, por exemplo, ofereceu concertos solos em março, maio e junho, na Alemanha e na Escócia. Em 2014, fez apresentações solos no Japão (março) e nos EUA (maio e junho).

Brötzmann tem, de fato, se dedicado mais ao formato, tão caro aos saxofonistas do free, nos anos 2000. Nas três décadas anteriores, deixou como testemunho apenas quatro títulos: Solo (1976), 14 Love Poems (1984), No Nothing (1991) e Nothing to Say (1996). Depois, a oferta de álbuns solos acelerou, com a sequência formada por Right as Rain (2001), Petroglyphs (2004), Lost & Found (2006), Solo + Trio Roma (2012) e Solo at Dobialab (2012). O conjunto agora é ampliado com a chegada de Münster Bern.
Curioso notar que todos os quatro títulos solo pré-2000 são frutos de sessões de estúdio, com várias e relativamente curtas faixas (para um trabalho de Brötzmann) e, não raro, contemplando algumas de suas investidas mais líricas e contemplativas – “Right as Rain” ainda apresentaria essa mesma estrutura. Já os discos solo que vieram depois são realizações ao vivo, que exibem o músico desenvolvendo suas ideias de forma mais ampla, menos concentrada, cada vez mais confortável com o formato.

Registrado em concerto único feito pelo músico no “Zoom In Festival for Improvised Music”, em outubro de 2013, na Suíça, este novo Münster Bern apresenta cinco temas, em que saxes, clarinete e tarogato são explorados. A acústica singular da catedral de Bern, onde foi realizado o concerto, amplifica a beleza da apresentação. A reverberação propiciada pelo singular espaço tem papel relevante no resultado sonoro final do registro e faz o ouvinte imaginar o quão impactante deve ter sido o concerto para quem o presenciou. A espacialidade se torna aqui um ponto fundamental, com a qual Brötzmann joga e explora de forma contundente, fazendo dela um elemento a mais a engrandecer a música gestada.

O álbum inicia com Brötzmann ao tarogato, tocando um tema dolorido e contemplativo, que vai ganhando rapidamente volume e energia, tendo já a seus três minutos se desdobrado em uma das características explorações labirínticas do instrumentista. Certo colorido oriental – e não apenas pelo exotismo do instrumento – ecoa em algumas das linhas exploradas. Nesta “Bushes and bundles” é que de forma mais aguda se nota a riqueza da sonoridade da catedral, com o som encantatoriamente se prolongando nas ligeiras pausas. O concerto entra em seguida em sua mais extensa faixa, “Crack in the Sidewalks”, com seus quase 19 minutos. Ao sax alto, Brötz segue o mesmo esquema, iniciando-a com uma plácida melodia, que vai se abrindo em uma intensa improvisação. Aqui, a peça alterna um esquema de stop-and-go, variando ritmo e intensidade, acelerando e retendo as frases durante o desenvolvimento do tema. “Move and Separate”, ao clarinete, se desvela de forma diferente, mais contida, centrada e mesmo introspectiva. A peça parece demorar mais para esquentar, mas traz, claro, seus picos de intensidade. Chega-se aí à parte final do concerto, com o músico alemão encarando seu instrumento-mestre, o sax tenor. “Chaos of Human Affairs” inicia de forma mais pujante que as faixas anteriores, mas não deixa de oferecer certo lirismo em algumas passagens. O curto bis, “The Very Heart of Things”, abre com uma citação ao clássico ornetteano Lonely Woman – que ele gravou antes duas vezes a solo (em “14 Love Poems” e “Solo + Trio Roma”) –, que se desdobra em uma breve improvisação enérgica, para não esquecermos quem está comandando a noite. 
Münster Bern é uma apresentação na qual a genialidade e complexidade de Brötzmann estão bem representadas, sendo uma miniatura de sua ambiciosa escritura artística.



MÜNSTER BERN  ****
Peter Brötzmann
Cubus Records





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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura, tendo se especializado na obra do escritor António Lobo Antunes. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos e foi  correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e jazz para o Valor Econômico; também colabora com o site português Jazz.pt