Há 50 anos, nascia em Chicago um dos projetos mais longevos e fundamentais da música livre: o coletivo AACM (Association for the Advancement of Creative Musicians). Surgido no ápice do free jazz, em maio de 1965, tinha em sua origem a missão de difundir arte e cultura, fomentando a criatividade e a liberdade amparado em um lema preciso: Great Black Music Ancient to the Future.
O projeto AACM teve em seu núcleo fundador os pianistas Muhal
Richard Abrams e Jodie Christian (1933-2012), o trompetista Philip Cohran e o
baterista Steve McCall (1933-1989). Ao grupo se juntaram ainda em seus primeiros
tempos os então jovens Anthony Braxton, Wadada Leo Smith, Leroy Jenkins (1932-2007),
Maurice McIntyre (1936-2013), Roscoe Mitchell, Lester Bowie (1942-1999) e
Joseph Jarman – estes últimos logo formariam o Art Ensemble of Chicago. Muitas dezenas de
músicos passariam pela AACM nessas cinco décadas de existência, alguns ficando
por toda a carreira, outros apenas durante certo período. Desse caldo criativo,
saíram não poucas obras-primas, álbuns que mostraram caminhos frescos para o
free jazz e a improvisação livre e influenciaram artistas mundo afora.
Aproveitando esse momento de celebração, selecionamos 15 álbuns fundamentais,
um de cada artista, editados nas últimas cinco décadas, que mostram um pouco da
vasta amplitude estética desenvolvida pelos músicos ligados à AACM. Audições
obrigatórias.
“Sound”
(1966)
Roscoe
Mitchell
O álbum de estreia de Roscoe Mitchell foi também o primeiro
a ser editado oficialmente por membros do então novo coletivo AACM. Da mais
free jazzística e direta “Ornette” à extensa e contemplativa faixa-título,
Sound se tornou um marco dos novos rumos que a música livre tomava nas mãos
dessa nova geração. O sexteto contava com Lester Bowie e Malachi Favors, que em
breve formariam o AEOC com Mitchell.
“Levels and Degrees of Light” (1968)
Muhal
Richard Abrams
O mentor da AACM criou uma peça realmente única com este Levels
and Degrees of Light. São três peças, diferentes entre si, com momentos de
improvisação intensa dividindo espaço com lentas divagações sonoras, um poeta
recitando (na faixa “The Bird Song”) e uma cantora em modo “lírico” (Penelope
Taylor), além das participações de Anthony Braxton e Leroy Jenkins. Esse álbum
ilustra bem a amplitude dos interesses artísticos da AACM desde seus tempos
primeiros.
“For Alto” (1969)
Anthony
Braxton
Segundo título gravado por Braxton, quando ele contava com
apenas 23 anos de idade. Foi o primeiro álbum dedicado inteiramente ao saxofone
solo, formato que se tornou um marco na free music e praticamente obrigatório a
todo saxofonista dessa seara. Ouvir esse trabalho da juventude é entender que
Braxton estreou na hora certa, quando tinha de fato algo de novo a oferecer.
“Humility in the Light of Creator” (1969)
Kalaparusha
Maurice McIntyre
Trabalho que carrega a espiritualidade muito associada ao
free jazz na virada dos anos 60/70, Humility in the Light of
Creator se estrutura a partir da conexão entre sopros incendiários, cânticos divagatórios e referências percussivas afro. O saxofonista McIntyre,
morto em 2013, foi daqueles músicos que acabaram, apesar de sua importante
criação, ficando à sombra de seus contemporâneos. Para quem não conhece o
registro, vale começar pela intensa "Kcab Emoch", que traz todos elementos que
fazem deste um disco fundamental.
“Vietnam” (1972)
Revolutionary Ensemble
Leroy Jenkins (violin), Sirone (baixo) e Jerome Cooper
(bateria) criaram esse excepcional trio de cordas e percussão no início dos
anos 70. Com esse primeiro registro oficial, trouxeram à improvisação livre uma
nova perspectiva sonora, em que o camerístico se embebia de energy music para
investigar um campo ainda pouco explorado. As duas longas divagações (o álbum
conta com apenas duas faixas, Vietnam I e II) demandam uma
recompensadora escuta atenta e ininterrupta.
“Fanfare for the Warriors” (1974)
O Art Ensemble of Chicago é o mais longevo e conhecido
projeto ligado à AACM. Dentre vários clássicos que gestaram, Fanfare for the
Warriors ocupa um lugar destacado. Com participação de Muhal Richard Abrams no
piano, o álbum bem representa a multifacetada criação do quinteto, trazendo a
clássica “Nonaah” e a fantástica faixa-título, talvez a peça mais explosiva
criada pelo grupo.
“Air Raid” (1976)
Air
Com uma pegada por vezes mais relaxada e atenção ao lado
composicional, o trio Air se tornou um grupo icônico do free setentista. Ao
lado do fundador da AACM Steve McCall estavam o saxofonista Henry Threadgill e
o baixista Fred Hopkins (1947-1999). Esta é a segunda gravação do Air, com os instrumentistas no auge, o que faz com que o disco soe preciso e sem arestas. A
gravação mostra bem a filosofia do trio, onde não havia protagonistas: a música
só existia a partir da conexão entre os três.
“Dark Day” (1979)
Fred Anderson
O saxofonista Fred Anderson (1929-2010) foi um daqueles
grandes músicos que receberam menos atenção do que suas obras mereciam. Ele
apenas foi gravar como líder no fim dos anos 70, já com quase 50 anos de idade.
Este exemplar ao vivo é um de seus primeiros registros e conta com um jovem
Hamid Drake na bateria. Em quarteto, apresenta alguns de seus belos temas, como
“Three on Two” e “Saxoon”.
“Homage toCharles Parker” (1979)
George Lewis
O então jovem trombonista da AACM George Lewis criou essa
gema moderna, em que uma linguagem contemporânea é utilizada para celebrar o mestre do bebop.
Para a empreitada, chamou Douglas Ewart (bass clarinet), Anthony Davis (piano)
e Richard Teitelbaum (sintetizador, moog). A inusual formação do quarteto
executa apenas duas longas intrigantes peças, com os eletrônicos criando atmosferas
densas e obscuras, por entre as quais sopros e piano transitam.
“Spirit Catcher” (1979)
Wadada Leo Smith
Fundamental registro do trompetista Leo Smith (que ainda não
assinava Wadada), em que sua maneira composicional, na qual partes escritas
abrem espaços amplos para a improvisação, se mostra já bem delineada. “Images”,
que abre o disco executada por um quinteto, já carrega toda a sedutora beleza que
Wadada desenvolveria com perfeição nos anos 2000 e que desaguaria na obra-prima Ten
Freedom Summers.
“Three Gentlemen from Chicago” (1981)
Ethnic
Heritage Ensemble
Criado pelo percussionista Kahil El’Zabar, o trio Ethnic
Heritage Ensemble buscava sua base em elementos da música africana, à qual
trazia a improvisação, o swing, o groove, sempre com uma consciência grande do universo
jazzístico. Neste brilhante álbum de estreia, El’Zabar é acompanhado dos pouco
lembrados saxofonistas Edward Wilkerson e Light Henry Huff. A faixa “Brother
Malcolm” sintetiza a estética do grupo.
“Rag, Bush and All” (1988)
Henry
Threadgill Sextett
A partir do final dos anos 70, Henry Threadgill começou a
explorar seu trabalho como compositor em diferentes projetos além do Air. Seu “Sextett”
traz alguns dos melhores momentos, desenvolvidos em uma espécie de avant-jazz
camerístico. Em meio a grandes álbuns que editou, com formações variadas, Rag,
Bush and All (com violoncelo, trompete, trombone, sax, baixo e bateria) tem um
brilho especial, sintetizado em sua melhor faixa, “Sweet Holy Rag”.
“Venus” (1998)
Ari Brown
Ligado à AACM desde meados dos anos 70, o saxofonista Ari
Brown gestou uma tímida discografia, bem abaixo do desejado por quem conhece
seu trabalho. Brown sempre foi conhecido por manter um interesse grande no
post-bop, a que agrega elementos mais avant-garde. Aqui podemos vê-lo prestar
com suas composições homenagem a figuras importantes para ele, como nas faixas “Roscoe”
e na saborosa “Trane’s Example”.
“TheChicago Project” (2007)
Matana Roberts
Matana Roberts se tornou mais amplamente conhecida em anos
recentes, com o projeto Coin Coin, já afastada de Chicago e da AACM. Mas sua
obra anterior traz momentos muito importantes. Aqui ela toca com seu quarteto (Jeff
Parker, Joshua Abrams e Frank Rosaly) e recebe como convidado, em três faixas, o
saxofonista Fred Anderson, com o qual desenvolve em duo “Birdhouse”. O frescor
de temas como “Thrills” e “Exchange” tornam o registro irresistível.
“Aquarius” (2013)
Nicole Mitchell
A flautista Nicole Mitchell é hoje a face marcante da AACM –
ela foi a primeira mulher presidente da organização. Nicole tem se dividido em
diferentes projetos, com resultados realmente grandes. Em Aquarius ela trabalha
com o quarteto “Ice Crystal”, criando música de rara serena beleza. A seu lado
estão Joshua Abrams (baixo), Frank Rosaly (bateria) e o vibrafonista Jason
Adasiewicz. “Aqua Blue” e “Above the Sky” são encantamento puro.
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*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura, tendo
se especializado na obra do escritor António Lobo Antunes. Escreveu sobre
jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; também foi correspondente do
jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e música para o
Valor Econômico