A cada novo capítulo editado de seu projeto Coin Coin, a
compositora e saxofonista de Chicago Matana Roberts tem demonstrado que sua
força criativa ainda não atingiu o ápice: ela sempre se mostra uma vez mais capaz
de nos surpreender. Com o lançamento neste mês de “Chapter Three: River Run
Thee” não foi diferente: novamente estamos diante de um trabalho inquietante, encantatório
e inebriante.
Por Fabricio Vieira
A ideia de conceber o work in progress Coin Coin nasceu há uma década. Mas apenas em 2011 seu primeiro capítulo, Gens de Coloeur Libres, foi editado. O segundo episódio, Mississippi Moonchile, saiu em 2013. E agora é a vez de o terceiro, River Run Thee, ser conhecido. O projeto Coin Coin terá 12 capítulos no total: no atual ritmo, levará mais quase duas décadas para estar completo...
“O projeto [Coin Coin] começou em 2005, graças a uma bolsa
concedida pelo Roulette Intermedium, de Nova York. Eu tenho um grande
interesse pela história americana e queria encontrar uma maneira de trazê-la ao
meu trabalho.
“Eu gosto de ser uma compositora e também de criar sons
conceitualmente. Acredito na liberdade sonora, mas realmente gosto de tocar
música que tenha ambas as ideias [composição e improvisação] funcionando juntas
o tempo todo”, disse Matana, em conversa com o FreeForm, FreeJazz em 2012.
Matana by Evan Hunter McKnight |
Essa sua abordagem do fazer musical parte de um conceito que
ela criou: o Panoramic Sound Quilting, que engloba ideias visuais, trechos
musicais compostos e pré-gravados, improvisação e palavras para armar um tecido
sensorial que, partindo de fontes várias, alcança um todo organizado e
envolvente. E Coin Coin é o campo no qual tal processo criativo é desenvolvido em
sua plenitude. Mesmo independentes, as 12 partes de Coin Coin comporão
um todo quando estiverem prontas.
“Coin Coin” era o apelido de Marie Thérèse Metoyer (1742-1816),
histórica personagem que sempre fez parte das conversas familiares dos Roberts. Marie Thérèse viveu como escrava até seus trinta e poucos anos, tornando-se,
depois de conquistar a liberdade, destacada figura na Louisiana, atuando como comerciante e líder comunitária. “The name of this project is called Coin Coin
and it is named after the nickname of a woman who played a big part in the
ability of my family’s survival. I am dividing the anecdotes and history of my
family into musical chapters of a sort that are represented by different
ensemble configurations. My hope is that one day I will be able to perform the
entire narrative with the different ensembles as one large ‘life cycle’. But
for now I have been performing the different chapters in separate performances”,
contou Matana, em uma entrevista à época do lançamento de “Chapter One”.
A música desenvolvida por Matana para o projeto Coin Coin se espalha por notações gráficas, improvisação, técnicas jazzísticas,
elementos de gêneros musicais tradicionais e contemporâneos específicos ligados à temática de cada capítulo,
‘spoken narrative’, poesia e canto. De um capítulo a outro que vem à luz, Matana tem trabalhado com
grupos e concepções musicais distintas: se há uma clara coesão que liga todas
as partes, isso não ocorre pela repetição de formas, estruturas ou opções estilísticas
anteriormente bem-sucedidas. Chapter One: Gens de Coloeur Libres, por exemplo, contou
com dezesseis músicos envolvidos, entre vozes e instrumentos, com elementos de jazz,
blues e gospel bem demarcados na concepção da obra. Para Chapter Two: Mississippi
Moonchile, o grupo foi reduzido a um quinteto, ao qual se juntou um
surpreendente cantor lírico – o tenor Jeremiah Abiah, que elevou a dramaticidade
da peça, que em muitos momentos soa como uma espécie de suíte jazzístico-camerística.
Neste Chapter Three: River Run Thee, Matana está sozinha. Além do sax alto e de sua voz, ela trabalha apenas com sintetizador (Korg Monotron) e um piano de parede do início do século passado.
Neste Chapter Three: River Run Thee, Matana está sozinha. Além do sax alto e de sua voz, ela trabalha apenas com sintetizador (Korg Monotron) e um piano de parede do início do século passado.
Sem dúvida, este é o trabalho menos jazzístico da
discografia de Matana. Mais do que nunca, ela pode atrair a atenção de ouvintes
interessados em outros percursos sonoros que não a free music ou o jazz avant-garde. A voz aqui é explorada de forma bastante intensa, tanto via spoken word quanto
pelo canto em si, estando presente em quase todo o percurso de 45 minutos,
divididos em doze temas, que compõem River Run Thee. Seu “panoramic sound
quilting” está muito presente e a obra resulta em um painel sonoro
inquebrantável – foi realizado para ser ouvido de forma ininterrupta.
Camadas criadas pelos sintetizadores arquitetam o fundamento basilar da obra, se expandindo de ponta a ponta pela peça e formando o percurso sobre e por entre o qual as
intervenções vocálicas transitam. E é exatamente a voz e as ruidagens e
texturas sintetizadas que formam o núcleo expressivo do conjunto. Ao sax
alto, instrumento principal de Matana, é dado pouco espaço protagonista: no
primeiro tema, “All is Writen”, por exemplo, o sax está presente quase que o
tempo todo, mas mais ao fundo, apoiando e impulsionando as palavras – é aqui
que se concentram os momentos mais profundamente dramáticos do álbum, com a voz
de Matana clamando: “Oh why do we try so hard... all is written in the cards… Because
we should...”. A Matana solista, tirando belezas singulares de seu sax alto, se
mostra raramente, como no lírico solo de “Dreamer of dreams” ou no começo de “Nema
Nema Nema”.
Diferentes textos entraram na elaboração desse trabalho. Há,
por exemplo, um sample do discurso “Confronting white oppression”, feito por
Malcolm X no começo de 65. O cancioneiro popular norte-americano também marca
presença por meio de trechos de peças como “Beautiful Dreamer”, de Stephen
Foster, e “My Country Tis of Thee”, de Samuel Francis Smith.
Além disso, Matana fez uma pesquisa sonoro-imagética de campo para criar o álbum, viajando e coletando material em Mississippi, Tennesseee e Louisiana (a investigação foi registrada por ela em um site). Ela também passou a morar em um pequeno barco, como forma de adensar o clima de sua criação.
Além disso, Matana fez uma pesquisa sonoro-imagética de campo para criar o álbum, viajando e coletando material em Mississippi, Tennesseee e Louisiana (a investigação foi registrada por ela em um site). Ela também passou a morar em um pequeno barco, como forma de adensar o clima de sua criação.
Matana by Brett Walker |
O depoimento dado por Matana sobre a concepção e gravação do
álbum, em entrevista ao site Tiny Mix Tapes, é bastante elucidativo do processo
criacional de “River Run Thee”:
“I wanted
to make sure I was going in a punk direction. I have friends who are
amazing musicians or amazing electronic sound artists. I truly respect what
they do, but I’m not trying to do what they do. I’m committed to the
possibilities of lo-fi and the equipment that I can use to create something
sonic and strange and fascinating. Also, I’m not very much of a gear-head; I
need tools that feel very instinctual — so that was the approach in using
acoustics and space as an instrument. So we had microphones everywhere, even in
a piano shell; we had that set up and used it as a sonic bounce-off for the
saxophone. And the whole
commitment to inexpensive materials is crucial, so I used these three synths
that costs about US$50 a pop, and the field recordings I made in the south I
made on a zoom H4 recorder, and I weave things together in Logic and use
that as the bottom base. Then I went into the studio with the
purpose of overdubbing and locking into my biggest skill set — improvisation. When I plug into that skill, all
sorts of things happen, but I was nervous about sharing this record, I was
nervous about sharing this with people.”
“River Run Thee”, apesar de ser coerente e devedor de toda a
obra da saxofonista, parece dialogar também – conscientemente ou não – com vanguardas sonoras do campo eletroacústico dos anos 1960: não é difícil ligá-la
a peças icônicas como “La Fabrica Illuminata”, de Luigi Nono.
Para o álbum, a artista convocou mais uma vez o engenheiro
de som Radwan Moumneh e retornou ao
estúdio Hotel2Tango, em Montreal – parceria que tem se mostrado bastante frutífera
para o resultado final dos capítulos de Coin Coin.
Matana tem apresentado em seus concertos partes dos
capítulos 4, 5 e 6 de Coin Coin. Ela diz que gosta de ir testando os capítulos
no palco, antes de entrar em estúdio para fazer o registro definitivo. Mas será
que teremos que esperar até 2017 para ouvir o próximo episódio pronto? Quem
sabe, se realmente se concretizar seu retorno ao país neste ano, não ouçamos
algo de novo desse fabuloso projeto...
*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura, tendo se especializado na obra do escritor português António Lobo
Antunes. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; também
foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico.