Leitura obrigatória: "O Livro do Jazz"






Após quase quatro décadas, o clássico Das Jazzbuch, de Joachim-Ernst Berendt, ganha uma nova versão em português. Com tradução realizada a partir de recente edição alemã, o Brasil passa a contar com um exemplar mais completo dessa obra fundamental para compreender o mundo do jazz.   





Quando o alemão Joachim-Ernst Berendt escreveu Das Jazzbuch, em meados dos anos 1950, dificilmente poderia imaginar que seu livro se tornaria uma das grandes referências sobre o universo jazzístico. Seis décadas e muitas reedições depois, "Das Jazzbuch" permanece como o principal legado desse crítico e produtor que dedicou sua vida à divulgação e à perpetuação do jazz. Com a morte de Berendt em 2000, seu antigo colaborador Günther Huesmann assumiu a missão de atualizar a obra nas edições seguintes.
Editado agora no Brasil como “O Livro do Jazz: de Nova Orleans ao Século XXI” (tradução de Rainer Patriota e Daniel Oliveira Pucciarelli), a obra de Berendt mostra que mantém sua relevância e vitalidade, sendo um título obrigatório a todos os interessados nesse gênero musical. Essa nova tradução para o português foi feita a partir da versão alemã publicada em 2007. Nos anos 1970, o livro teve sua primeira edição nacional (“O Jazz: do Rag ao Rock”, tradução de Júlio Medaglia), que pode ser encontrada com facilidade em sebos ou mesmo livrarias, mas que, no entanto, está bastante desatualizada, ignorando as transformações sofridas por essa música nas últimas décadas.

Com um texto de perfil mais jornalístico, que evita a terminologia técnica sempre que possível, O Livro do Jazz é dividido, de forma quase didática, em sete capítulos. “Os Estilos do Jazz” abre o volume com um painel histórico da evolução e transformação do gênero. Depois vem “Os Músicos do Jazz”, no qual são destacados 15 artistas essenciais. “Os Elementos do Jazz”, na sequência, busca elucidar as particularidades que moldam as características do jazz, destacando o papel da improvisação, do ritmo e da harmonia. Os capítulos seguintes são “Os Instrumentos”, “As Vozes”, “As Big Bands” e “As Bandas”.
Apesar dessa organização sistemática, na qual o leitor pode ir de um tema a outro seguidamente, de forma complementar, a leitura dos capítulos não demanda que seja necessariamente feita de forma sequencial. É possível trafegar entre eles sem uma ordem precisa, dependendo do conhecimento que o leitor já tiver desse gênero musical. Para completar o volume, há como apêndices uma discografia recomendada, com algumas dezenas de discos destacados, e um breve texto de Carlos Calado sobre o jazz no Brasil.
As transformações vivenciadas pelo jazz em cerca de um século de história nem sempre foram amplamente aceitas por músicos, críticos e ouvintes. “Isso não é jazz” é uma frase comum de se ouvir no meio, tanto quanto a aclamada “morte do jazz”. Essa disputa pela originalidade e essência do jazz é bastante antiga. Já nos anos 40, músicos do swing – estilo dominante a partir da década de 30, tendo se tornado verdadeiro fenômeno popular e comercial – criticavam a falta de foco e a ousadia sem rumo do nascente bebop. Até hoje, a radicalidade do free jazz – nascido há meio século! – consegue provocar desconforto, fazendo que músicos herdeiros dessa linhagem permaneçam ainda distantes dos holofotes.
Joachim-Ernst Berendt encarava o jazz com um olhar múltiplo, no qual há espaço para todas as vertentes desenvolvidas nesse âmbito musical. Dessa forma, a generosidade do crítico alemão representa um verdadeiro contraponto ao cultuado documentário “Jazz”, de Ken Burns, que, com sua visão conservadora, trata estilos dos anos 60 e 70 apenas como episódios passageiros que não merecem séria atenção, e não como momentos que permitiram que os músicos levassem suas explorações artísticas ao extremo. Vale notar que no capítulo “Os Músicos do Jazz”, ao lado do guardião da tradição Wynton Marsalis aparece o vanguardista John Zorn – verdadeira heresia para os jazzófilos mais puristas.
“O jazz é o som da mudança, da metamorfose, da expansão e do desenvolvimento”, defende o autor no prefácio do livro. Assim, os 15 artistas escolhidos por Berendt e Huesmann para compor o capítulo “Os Músicos do Jazz” englobam todas as esferas dessa música. Há os artistas óbvios e inevitáveis, que estariam em qualquer lista (Louis Armstrong, Duke Ellington, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Lester Young, Miles Davis, John Coltrane e Wynton Marsalis), os menos lembrados pelo grande público (Bix Beiderbecke e David Murray) e os vanguardistas (Ornette Coleman e John Zorn).
Chama atenção que o grupo selecionado traga apenas uma mulher, cantora, que costuma ser mais ligada ao mundo do blues: Besse Smith (1895-1937). Nomes essenciais como Carla Bley e Mary Lou Williams ficam restritas à seção “O Piano”, na parte dedicada aos instrumentos. Será que o papel das mulheres no mundo do jazz não merece ser reavaliado?

Se a publicação dessa nova edição da obra clássica de Berendt deve ser celebrada, algumas ressalvas merecem ser feitas. Não dá para entender o motivo de o exemplar ser tão caro, sendo uma edição bem simples, sem uma foto sequer ou qualquer requinte gráfico que elevasse seu custo de produção. Outro ponto negativo é a revisão, que parece ter sido realizada de forma apressada: não são poucos os erros de digitação, remissão e mesmo de citação.
Mas há algo pior: erros crassos de tradução, que não haviam ocorrido na edição brasileira feita nos anos 70. Dois exemplos:

*Quando, no capítulo “Os Estilos do Jazz”, o autor vai tratar do advento das vanguardas dos anos 60, ele explica que houve pioneiros que deram os primeiros sinais sobre as mudanças que implodiriam o jazz naquele período, destacando o trabalho do pianista Lennie Tristano (1919-1978). Na anterior tradução, de Medaglia, lia-se: “(...) algo que Tristano havia previsto em 1949 em sua Intuition” – a peça inovadora criada pelo pianista naquele ano. Na nova tradução, a afirmação virou: “(...) pela intuição de Lennie Tristano em 1949”. Ou seja, a peça “Intuition” se transformou na “intuição” de Tristano...

*Já no capítulo “Os Instrumentos”, quando o tema são as transformações sofridas pela bateria em sua história, o autor destaca o papel relevante de Tony Williams (1945-1997) nesse processo. E a simples informação original de que “em 1963, Miles Davis havia trazido para o seu grupo o jovem baterista de 17 anos Tony Williams” se transforma na nova tradução em nada menos que: “Em 1963, Miles Davis trouxe para seu quinteto o septuagenário Tony Williams”. Sim, o prodígio de 17 anos se tornou um veterano setentão... (trágica ironia: Mr. Tony Williams viveu apenas 51 anos).


De qualquer forma, O Livro do Jazz é uma obra que deve figurar obrigatoriamente na estante dos amantes e interessados nesse gênero musical. Apesar de suas mais de 600 páginas, o livro não perde o tom de “introdução ao gênero”, sendo uma bússola valiosa para quem ainda está se embrenhando por essa seara musical. A maior facilidade para ouvir música nos dias atuais, com os diversos formatos digitais disponíveis, faz com que essa viagem pelo universo jazzístico possa ser ainda mais completa, desde que o leitor se disponha a buscar descobrir a vasta sonoridade gestada pelas centenas de músicos citados na obra.
“Por ser uma música anticonformista, o jazz pode exigir de seus ouvintes que joguem fora normas já cristalizadas e estejam sempre prontos a buscar o novo”, conclui o autor. É essa busca por um mundo sonoro sempre novo que faz muito da sedução e da perenidade do jazz.



O Livro do Jazz: de Nova Orleans ao Século XXI
Autor: Joachim-Ernst Berendt  (com Günther Huesmann)
Perspectiva/Sesc (2014)
640 págs., R$ 129



(*uma versão desse texto foi publicada no Valor Econômico)



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*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura, tendo se especializado na obra do escritor português António Lobo Antunes. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; também foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico.