Quase meio século após sua morte, John Coltrane (1926-1967)
ainda parece ser capaz de surpreender os ouvintes. Suas últimas investigações
sonoras não são unanimidade até hoje. O recente lançamento de material, em
parte inédito, datado de 1966 mostra que, para não poucos, o saxofonista estava
em uma via sem saída, perdidamente seduzido pela enérgica ruidosidade do free
jazz. Mas o que essa gravação resgatada, realizada na Temple University, exibe
é um artista no ápice da inventividade, em total coerência com sua trajetória,
mas buscando sempre algo além, algo, talvez, ainda inominado...
Por Fabricio Vieira
Em julho de 2010, a gravadora Free Factory editou em CD (“At Temple University 1966”) uma versão do concerto realizado por Coltrane e seu
grupo em 11 de novembro de 1966, na Filadélfia, no auditório Mitten Hall, na
Temple University. A fonte do registro era a rádio WRTI-FM, responsável
pela transmissão do concerto na época, e que por cerca de quatro décadas permaneceu
como item apenas de colecionadores. Mas essa versão da Free Factory não estava completa:
com 63 minutos, trazia três faixas, deixando de fora quase meia hora de música.
Esse é um dos interesses desta nova edição do concerto apresentada agora pela
Resonance Records/Impulse: são cerca de 90 minutos de música, com os cinco
temas executados naquela noite.
Offering: Live at Temple University chega às prateleiras em
versão CD e LP duplos e oferece ainda informações precisas que não constavam da
versão lançada em 2010. A escalação dos músicos, por exemplo, antes havia saído
de forma equivocada e parcial, com a inclusão de Jimmy Garrison (que não tocou
naquele show, tendo sido substituído pelo pouco conhecido baixista Sonny
Johnson, irmão do trompetista Dewey Johnson) e o esquecimento de um grupo de
percussionistas convidados e dois saxofonistas extras. Além disso, a qualidade
do som desse intenso concerto teve alguma melhora de uma edição a outra.
Quando retornou da turnê de duas semanas que realizou pelo
Japão em julho de 1966, com seu quinteto de então – Alice Coltrane no piano, Garrison no
baixo, Rashied Ali na bateria e Pharoah Sanders no sax –, Coltrane,
possivelmente já mais fatigado a cada dia pela doença que o vitimaria em julho
de 1967, recusou uma turnê pela Europa e concentrou seu último ano de vida
entre algumas poucas entradas em estúdio e concertos, não muitos, nos Estados
Unidos. Foi nesse contexto que Trane aceitou o convite feito pelos alunos do
centro acadêmico da Temple University para uma apresentação numa sexta-feira, 11 de novembro, às 20h30, com ingressos vendidos a US$ 2,50. Coltrane
levou ao palco um amplo grupo, centrado em seus parceiros principais (Alice,
Pharoah e Ali) e adicionando um punhado de convidados pouco conhecidos. Além do
citado Sonny Johnson no baixo, participaram do show os percussionistas Umar Ali
(irmão de Rashied, também conhecido como Omar), Algie DeWitt, Charles Brown e
Robert Kenyatta, e os jovens saxofonistas Arnold Joyner e Steve Knoblauch. Os
temas executados naquela noite (cinco, no total) foram alguns dos rotineiros do
repertório traneano, que ele seguia relendo nessa sua etapa free (“My Favorite Things”,
“Naima” e “Crescent”), ao lado de outros mais frescos naquele tempo (“Leo” e “Offering”).
[A participação de Steve Knoblauch no concerto merece um
adendo – e ilustra bem como o (já então) lendário Coltrane era. Knoblauch, um
jovem saxofonista amador local de 18 anos, foi ao concerto para ver um de seus
ídolos tocar. Chegando cedo para o evento, viu Coltrane circulando por ali e foi trocar uma ideia com ele. Depois de um papo rápido, Trane perguntou se ele não queria ver o
show do palco, no fundo. O garoto, todo empolgado, sentou-se lá atrás com seu
sax alto no colo: e eis que, passada uma hora de concerto, em meio a “My Favorite
Things”, Trane vai até ele e pergunta se não quer tocar também. E assim, o jovem
saxofonista deixou seus três, quatro minutos de solo registrados ao lado de
alguns dos maiores nomes da free music. Dado curioso: Knoblauch não se tornaria
músico profissional; viraria médico especializado em psicoterapia.]
Apesar da relativamente boa qualidade sonora deste
lançamento, infelizmente os percussionistas ficaram meio que escondidos, dando
apenas uma ideia do quanto deve ter sido quente essa apresentação ao vivo. Os
saxes, em primeiro plano, ganharam destaque acústico desproporcional em relação
aos outros instrumentos. Ao menos o resultado é superior ao obtido no conhecido álbum “The Olatunji
Concert”, editado pela Impulse! em 2001 e que traz o que foi uma das últimas
aparições públicas de Trane, em abril de 67. Desta última fase do músico, temos
um painel interessante de gravações ao vivo, sendo o material melhor editado o
box (4 CDs) “Live n Japan”, com a turnê nipônica de julho de 66. Há ainda, de
concertos captados no período, “Live at the Village Vanguard Again!”, documento
de maio de 66, e “Last Performance at Newport”, de julho de 66.
(Coltrane Quintet at Newport Jazz Festival, July 1966)
Se a música de Coltrane em sua última fase, de meados de 65
até sua morte em julho de 67, assumiu sua face mais livre e enérgica, vale
frisar que o instrumentista não chegou a mergulhar no território da
improvisação livre, mantendo como pôde um dedo ainda no universo composicional.
Claro que as visitas a seu repertório usual atingiram cada vez possibilidades
mais livres. Bom exemplo é a versão de "Naima" que aparece neste Offering: Live
at Temple University. Nunca Trane havia tocado esse tema,
que apresentou pela primeira vez em 1959, no álbum Giant Steps, de forma tão
livre. A melodia dolorosa que abre Naima já chega aqui desmembrada, com a
abertura improvisativa crescendo vertiginosamente com o desenvolvimento da
faixa. Trane concentra praticamente os seis primeiros minutos, dando um respiro
para a entrada de Alice que, com seu dedilhado lírico-espiritual, baixa a
tensão já dominante. Na sequência do concerto, vem “Crescent” – e a temperatura começa a se intensificar.
Pharoah aparece pela primeira vez e acende os ouvidos com seus ríspidos
característicos grasnados e ataques guturais. Podemos ouvir, ao fundo, gritos
de excitação/incentivo enquanto o sax dele faísca. Aqui também os
percussionistas todos entram em ação, avolumando a ritmicidade. É ainda nesse
tema que Arnold Joyner faz sua “ponta”: ao que parece, invadiu o palco com seu
sax alto, fez um solo e saltou de volta na plateia...
Nessa altura, o show estava em ponto de ebulição. É aí que
vem “Leo”. Composta por Coltrane naqueles tempos, Leo começou a aparecer em
apresentações ao vivo, para só depois ser registrada em estúdio (é um dos temas
do seminal “Interstellar Space”). Trane inicia os trabalhos tocando o curto e
repetitivo tema marcante de Leo, abrindo espaço para Pharoah exibir vulcânico e
rascante solo, que oscila em nossos ouvidos com o instrumentista se aproximando
e se afastando do microfone. Após a
longa intervenção de Sanders, Ali faz demolidora
passagem solista, até que emerge Trane que, antes de reassumir o tenor,
cantarola, batendo no peito: momento de êxtase da apresentação. A se lamentar: Leo é interrompida, em seu ataque final, com um corte
brusco...
“Offering”, outra então nova composição de Trane, mostra o
saxofonista em momento lírico-contemplativo, solando durante quase toda a breve
duração da peça (cerca de quatro minutos). A noite seria fechada com a clássica “My
Favorite Things”, tema fetiche do saxofonista, que ele sempre gostou de tocar
ao sax soprano e que faz parte de quase todas as apresentações registradas
entre 66 e 67. Como se tornou característico naquele tempo, a peça abre com uma
introdução de baixo (é um dos poucos momentos que se pode ouvir com clareza
Johnson no evento). Em sintonia com a forma como ocorreu a intervenção de Joyner em “Crescent”, Knoblauch entra em
ação, de súbito, com seu sax alto após o solo de Alice ao piano, mostrando um sopro
enérgico, mas um pouco deslocado, sem direção. Depois de uma intervenção fulminante
com o soprano, Trane volta a entoar seus chants, atuação que ganha maior
profundidade ao ser acompanhada por Sanders ao picollo. De arrepiar.
Offering: Live at Temple University é um documento intenso de
um momento vital para a música livre, testemunho de um tempo e um projeto
artístico infelizmente interrompidos de forma brusca. Existem alguns outros
concertos catalogados de Coltrane do período, mas que não consta se sobreviveram
por meio de algum tipo de registro, amador, radiofônico ou o que seja. Quem
sabe um dia desses não somos surpreendidos com o resgate de algum outro Trane
perdido?
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*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura, tendo se especializado na obra do escritor português António Lobo Antunes. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; também foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e jazz para o Valor Econômico.