Ainda em meio a uma prolífera fase, que resultou em mais de
uma dúzia de álbuns editados desde 2012, o saxofonista Ivo Perelman acaba de
lançar três novos títulos, nos quais é acompanhado por alguns dos nomes
centrais da cena free contemporânea. Com agrupações distintas – duo, trio e
quarteto –, formadas por parceiros com quem gravou em outras oportunidades, Perelman
apresenta três trabalhos com cores bastante variadas, todos editados pelo selo
britânico Leo Records.
Nesse conjunto de novidades, merece atenção extra um encontro inédito, Two men walking, que traz um duo entre Perelman e o violista americano Mat Maneri.
Mesmo
pertencendo à mesma geração e compartilhando a mesma cena, os dois
instrumentistas se encontraram pela primeira vez apenas em maio de 2013, quando
entraram em estúdio para gravar, ao lado de Matthew Shipp, as faixas da trilha
sonora do filme “Uma dose violenta de qualquer coisa”. Empolgado com o diálogo
estabelecido com Maneri, Perelman logo cogitou um novo encontro, que ocorreu em
outubro passado e resultou neste “Two men walking” – o título faz referência ao
contagiante “Three men walking”, que reuniu Mat, seu pai Joe Maneri (1927-2009)
e o guitarrista Joe Morris em 1995. “Two men walking” apresenta dez temas bem
centrados, não muito extensos (variam de um a oito minutos cada), nos quais o
diálogo entre cordas/sopro é o núcleo, sem abrir muitos espaços para solos de
maior fôlego. A intimidade e o prazer do saxofonista em trabalhar com cordas
fica evidente com o passar das faixas, que se desenvolvem de forma linear, sem
grandes picos enérgicos, como se de fato fossem partes de um todo coerente e
equilibrado. O tom camerístico da sessão nos leva a pensar na exibição dos
músicos – que ainda não tocaram juntos ao vivo – em uma galeria de arte ou um
pequeno teatro, em especial quando se ouve os temas mais líricos, como “Part 3”
e “Part 8”. Sobre o encontro com Maneri, o saxofonista disse: “Ele é como um alter
ego, quase telepático. É como se cada um de nós estivesse tocando ambos os
instrumentos ao mesmo tempo”. Para quem se encantou com discos anteriores como “Soulstorm”
e “Near to the wild heart”, nos quais o saxofonista é acompanhado apenas por
cordas, “Two men walking” é um trabalho de escuta indispensável.
Já em Book of Sound, vemos reeditada uma parceria antiga, a
mesma que gerou o disco “Cama de Terra”, de 1996: ao lado do sax tenor estão o
piano de Matthew Shipp e o baixo de William Parker. A maturação do trabalho dos
três instrumentistas entre as quase duas décadas que separam os dois títulos não
passa despercebida. A forma precisa e sem arestas com que as seis faixas de
“Book of Sound” se desenvolvem só poderia se cristalizar pelas mãos de artistas
completos e sólidos como eles nessa altura de suas trajetórias. A diferença se
nota também pela busca sonora de Perelman: naquele encontro anterior, o músico
estava saindo de sua fase “brasileira”; hoje, seu som universal não traz mais
resquícios de suas pesquisas sobre a brasilidade musical. Gravado em outubro de
2013, “Book of Sound” coloca mais o sax em primeiro plano que em “Two men
walking”, deixando espaços para que o instrumentista exiba com maior ganância
suas ideias melódicas e improvisativas, como fica evidente logo no primeiro
tema, “Damnant Quod Non Intelligunt” – todas as seis faixas trazem títulos em
latim. Entre a letargia de “Candor Dat Viribus Disputandum” e a vivacidade por
vezes tempestuosa de “Adsummum”, os três instrumentistas criam uma música
improvisada sem arroubos, com firme segurança sobre o que a free music
representa e pode oferecer.
O terceiro álbum que chega ao mercado também reestabelece uma parceria
antes testada. The Other Edge, como o título indica, trata-se de uma espécie
de lado B de “The Edge”, que saiu no ano passado. Gravado com o mesmo quarteto,
que traz Shipp, Michael Bisio (baixo) e Whit Dickey (bateria) – e que
acompanhou o saxofonista em sua última passagem por nossos palcos, em 2013 –, o
disco apresenta oito novos temas registrados em janeiro deste ano, cerca de 18
meses após seu antecessor ser concebido. A entrada da bateria em jogo move este
álbum para uma zona diferente da dos outros lançamentos. Tanto Perelman quanto
Shipp adicionam um corpo distinto, mais robusto, a seus toques em resposta ao
trabalho percussivo de Dickey. “Desert Flower” abre o álbum com uma energia
contagiante, com o sax em primeiro plano em seus movimentos iniciais, como se
convocando os parceiros para o passeio de mais de dez minutos pelas tortuosas e
incertas vias da improvisação livre. Sem tempo de amaciar os ouvidos, o
quarteto atravessa os seguintes três minutos sem pestanejar, retrocedendo
apenas para um respiro antes da intensa parte final – não poderia haver melhor
cartão de apresentação para o trabalho. Na outra ponta está “Petals or Thorns”,
uma densa e soturna peça, que cresce com muito vagar em meio a uivos doloridos
do sax e tensos ataques do piano. O clima muda novamente na sugestiva “Big Bang
Swing”, na qual podemos sentir em breves passagens o interesse de Perelman por
saxofonistas clássicos do jazz, com certo swing mais evidente se escamoteando
por entre as divagações conduzidas por ele e Shipp.
“The Other Edge” consegue
intensificar o trabalho que esse quarteto tem feito em seus encontros nos últimos
dois anos, sendo, até aqui, seu momento mais vibrante.