Matthew Shipp: a arte do piano


                                                                       Photo by Peter Gannushkin
Há 25 anos, Matthew Shipp dava início a uma das trajetórias mais inventivas do piano contemporâneo. Seu primeiro álbum, “Sonic Explorations”, de 1988, duo com o saxofonista Rob Brown, apenas apontava tenuamente para o que viria à frente. Dezenas de álbuns e parcerias com muitos dos nomes centrais da free music depois, Shipp está hoje no topo da arte pianística atual. Nascido em dezembro de 1960, em Wilmington (DE), Shipp estudou na Universidade de Delaware e no New England Conservatory (por onde também passou Cecil Taylor). Na adolescência, tocou teclado em bandas de rock e piano em grupos de post-bop. Foi apenas em 1984 que rumou para Nova York, em busca de novos rumos e possbilidades musicais. Como tantos artistas que chegaram a NY sem muitos contatos, Shipp demorou um pouco para se integrar e se destacar na cena; daquela década, o único registro sobrevivente é seu álbum de estreia. Ao jornalista Phil Freeman, ele relatou o que encontrou quando se mudou para NY:




The only things that were happening were they Wynton thing (the ‘neo-conservative’ thing) and the white avant-gardists that were downtown, the whole Zorn, post-Zorn thing. And for a black musician to be trying to actually play an instrument in their own style… people didn’t even listen to the content.” 

A associação com David S. Ware (1949-2012) no começo da década de 1990 acabaria por se revelar fundamental tanto para o processo criativo quanto para a afirmação do nome de Shipp. Com os anos 90, multiplicaram-se as parcerias e as gravações, com o pianista montando seus primeiros trios (formato basilar em sua história) e tocando com músicos das mais variadas amplitudes, de veteranos do free como Roscoe Mitchell e Evan Parker a representantes de outras searas, como o guitarrista J. Spaceman e o DJ Spooky. Assim, viu ser construída sua ampla palheta discográfica, de sonoridade aberta e contagiante, cuja assinatura pode ser encontrada em quase uma centena de títulos.

Os discos de piano solo são um capítulo de relevo em seu percurso. Shipp já gravou nove álbuns nesse formato. O primeiro registro solo data de 1995, “Symbol Systens”. Depois, outros títulos surgiriam de forma esparsa, com a forma solística ganhando volume na discografia do músico especialmente nos últimos cinco anos, a ver: “Un Piano” (2008), “4D” (2010), “Creation Out of Nothing” (2010) e “Art of Improviser” (2011, este  álbum duplo, um em trio e um solo).




Agora é a vez de Piano Sutras, lançamento da gravadora Thirsty Ear. Este novo registro solo remete em seu título (e no das faixas) a um universo marcado pela mística oriental, senda vital para um dos mais importantes parceiros de Shipp, o saxofonista David S. Ware.

Piano Sutras apresenta treze temas, sendo duas versões – de "Giant Steps" (Coltrane) e "Nefertiti" (Shorter) – em meio a composições próprias. Registrado no dia 20 de fevereiro deste ano, em três sessões contínuas no Park West Studios (NY), o conjunto mostra a amplitude da estética shippiana, revelando influências assumidas e outras, talvez, menos explícitas. Shipp já citou entre seus mestres os gênios bop Thelonious Monk (1917-1982) e Bud Powell (1924-1966). De fato, o bop é uma de suas trilhas, mesmo que revisto por uma visada contemporânea – vale lembrar que o pianista assina um trabalho chamado “Nu-Bop”. Cecil Taylor também faz parte do dedilhado de Shipp, do qual herda linhas advindas de sua dura arquitetura abstrata. Outra linhagem perceptível está associada a Erik Satie (1866-1925) e sua lírica obscura. Mas, como artista realmente inventivo, vale dizer, Shipp na verdade não se parece com nenhum desses pianistas: sua criação segue um rumo próprio, para a qual são fundamentais tanto sua faceta de compositor quanto a de improvisador. O título do novo álbum não é somente um nome a esmo: sustenta um projeto que estrutura a obra em questão. Em entrevista à revista digital “Soul and Jazz and Funk”, Shipp explica:

Piano Sutras is a prayer to the piano, hence the term ‘sutras’. I am trying to find a dimension on the instrument where the instrument is a simulation of itself by itself – in other words the instrument plays itself. (…) The pieces fit into a puzzle that explores various aspects of yin and yang – darkness and light – and a whole spectrum of pianistic vibrations.


Esse puzzle formado por variações de intensidade norteia todo o álbum. Os temas oscilam entre a robutez e o lirismo, silêncio e ataques, yin e yang, em suma. O disco abre com a peça-tema, marcada por um fluido e tênue dedilhado, com uma sutil melancolia rompida às vezes por pequenas ondulações de maior vigor imprimido pela mão esquerda. Uma virada vem na sequência, com a elevação do tom em “Cosmic Shuffle”, de cadência mais fraturada e camadas de sons que criam duros blocos taylorianos, que irão contrastar com os soturnos espaços silenciosos do terceiro tema, “Surface to Curve”. Nessas oscilações de modo, o disco vai se estruturando.      
Especial forte impressão causa “Uncreated Light”. A peça em muitos pontos nos remete ao universo pianístico do erudito contemporâneo, com Shipp abusando do pedal para criar uma sensação de alongamento e infinitude das notas, em camadas de densos ataques que ecoam até serem interrompidos por contrastantes sutis motivos, logo engolidos por novos robustos acordes – seca, quase bruta, intensidade. Já a balada “Space Bubble” oferece uma sufocante atmosfera, que demonstra se desenvolver ali no momento, com o pianista tateando de forma incerta, como se não quisesse caminhar por trilhas precisas, como um andarilho rodando sozinho sem rumo por uma fria noite.

Em meio às composições de Shipp estão os dois temas revisitados que são, curiosamente, também os mais breves. “Giant Steps” se resume a 1m11, com seu tema central sendo repetido algumas vezes, sem que o pianista divague ou abra seu núcleo melódico em meio a improvisos livres. “Nefertiti” é um pouco mais extensa, mas não chega aos 2m20, e, segundo o músico, surgiu mais como uma brincadeira não programada durante a sessão; como o resultado o agradou, entrou para o disco. Na realidade, as duas releituras soam um tanto quanto supérfluas em relação ao conjunto; se não chegam a perturbar a unidade, também não colaboram para ampliar o resultado final da obra.

Piano Sutras é uma brilhante introdução ao universo pianístico de Shipp, desvelando parte destacada de sua arte. A quem não conhece a obra solística do pianista, o álbum representa uma importante face de sua criação. E junto aos anteriores “One” e “4D” forma um tríptico que abarca alguns dos momentos fundamentais do piano contemporâneo.