Três shows
seguidos de três figuras maiores do saxofone. Três gerações, com propostas,
histórias e sonoridades distintas. Quem esteve atento pôde presenciar no último
fim de semana no festival Jazz na Fábrica facetas variadas da música intrumental livre contemporânea.
Roscoe Mitchell, figura lendária da free music dos anos 60, abriu os trabalhos
com dois concertos solísticos, quinta e sexta. David Murray, que iniciou a
carreira na cena loft jazz dos anos 70, tocou sexta e sábado. E Ivo Perelman,
que fez parte da revitalização do free jazz na virada dos 80/90, fechou a
sequência de intensas apresentações no domingo.
Ver Roscoe
Mitchell em concerto solo foi uma oportunidade (e experiência estética) que deveria ter
sido anotada na agenda como “obrigatório” pelos interessados em free music.
Mitchell atraiu um bom público (claro que havia desavisados que abandonaram o
espetáculo) e mostrou sua arte neste que é um dos formatos por execelência do
free jazz e da improvisação livre: o concerto de sax solo. Mesmo com a vinda
mais constante de músicos dessa seara musical para o país nos últimos anos, não
tínhamos tido a oportunidade de apreciar algum dos maiores do instrumento se
apresentando sozinho. Ao lado de Evan Parker, Anthony Braxton e Peter
Brotzmann, o músico do Art Ensemble of Chicago é um dos maiores que desenvolvem
há décadas a arte solística.
Ao adentrar o
palco, armado apenas com duas cadeiras (uma virada para cada um dos dois lados
principais do circular palco do teatro do Sesc Pompeia), uma porção de
instrumentos de sopro, uma garrafa d’água e uma estante com partitura, Roscoe
deixou claro logo em sua entrada que a faceta teatral do AEOC
não estaria presente. Discreto e concentrado, com um terno escondendo o corpo
miúdo, o músico tirou o paletó, pegou o sax e começou a apresentação, simples e
direto assim. Na sexta-feira, a peça inicial foi tocada em frente a uma
partitura, em baixa intensidade que não desvelava a avalanche de sons que viriam,
em crescendo, livremente improvisados, logo à frente. Trocando de instrumento e
de lado de palco a cada tema – cerca de meia dúzia foram executados –, Mitchell
exibiu sua técnica apuradíssima que chega ao esplendor quando empunha o sax
soprano e abusa do sopro circular, criando camadas infindáveis, uma miríade de
sons que desafiam e abalam as certezas de escuta. Uma arte que nasce e morre
ali, durante aquela cerca de uma hora de concerto; uma arte que apenas pode ser
degustada em sua plenitude ‘ao vivo’, vendo as ondulações do corpo, o arfar das
bochechas, a ligeireza precisa dos dedos e um fôlego nunca ofegante de um
senhor de 73 anos que consegue elevar a música a um campo metafísico: arte como
expressão do que há de mais desafiador e inebriante na criação humana.
Em outro
extremo esteve David Murray. Acompanhado de seu Infinity Quartet e tendo como
convidada a diva neo-soul/r&b Macy Gray, Murray comandou noites eletrizantes,
mas com uma música mais contida e organizada. Tocando para o maior público
reunido no Jazz na Fábrica, Murray soube dosar as entradas de Macy, que
permanece cerca da metade do show no palco, mantendo a apresentação sob sua
batuta, apesar de a estrela ser ela. Sem dúvida, a maioria dos presentes foi
para assistir a cantora e não faltaram reclamações do tipo “mas ela cantou pouco...”.
Isso, no entanto, foi fruto de má informação, que deve estar acompanhando o
saxofonista em diferentes paradas em sua turnê atual com Macy: em última instância,
trata-se de uma apresentação de David Murray. Dentro da estrutura que tem armado
desde os anos 80, o instrumentista conduz uma música que traz ingredientes do free
no qual nasceu, mas sempre apoiado em composições e bases jazzísticas de
diferentes matizes. Houve pontos de intensidade livre mais agudos, como
quando, no sábado, solou sozinho mais demoradamente em certa passagem, mas sem desembocar
em um processo de liberdade e rispidez sonora
de maior envergadura. Um dos momentos mais belos do concerto é a versão para “Joanne’s
Green Satin Dress”, peça de Butch Morris que apareceu em um dos primeiros
trabalhos de Murray (“Flowers for Albert”, de 76) e que agora recebeu letra e
interpretação de Macy. Houve também espaço para a nova “Be My Monster Love” e para
um hit da cantora (desconheço) que fez a alegria da massa, que cantarolou junto
com empolgação. De um modo geral, um concerto quente, que não incomodou ter que ser visto de
pé (salvo pela má conduta dos que vão apenas para desfilar e tirar fotos no
lugar de degustar a música) e que cumpriu com louvor o que se podia esperar
dele. Quem sabe o sucesso da noite não tenha aberto as portas para David
Murray retornar sozinho em um futuro próximo...
A semana foi
encerrada com a apresentação do quarteto comandado por Ivo Perelman, que havia
tocado pela última vez no país naquele mesmo palco, em 2010. Perelman trouxe
músicos com os quais têm trabalhado em anos recentes, mostrando elevado entrosamento
sonoro-colaborativo. Após adentrarem o palco e se ajeitaraem em seus
instrumentos, bastou que uma nota fosse soprada por Perelman, meio que ainda
ajeitando os lábios à boquilha, para que Michael Bisio respondesse com um
acorde desajeitado no baixo, e Matthew Shipp e Whit Dickey entrassem no jogo,
com a música rapidamente brotando. Pela próxima cerca de uma hora, o concerto se
desenrolou sem pausas, uma única longa improvisação coletiva com espaços para
todos os músicos apresentarem suas particularidades. Se certo clima de “The
Edge” – único álbum gravado pelo quarteto, em junho de 2012 – esteve
inevitavelmente presente, é curioso que o desenvolvimento tenha sido inverso (esse
é um disco com faixas breves, no qual a invenção improvisativa se apresenta
mais concentrada).
Bisio e Dickey,
que estavam pela primeira vez no país, demarcaram dois extremos. Enquanto Bisio
demonstrou muita excitação ao baixo, tirando do instrumento sons de grande
corpo em sequências que, por vezes, o colocaram no centro das atenções, o
baterista optou por um viés minimalista, que o escondeu nas bases da música
apresentada. Dickey concentrou seu toque nos elementos metálicos da bateria,
estruturando uma cadência ininterrupta baseada em pratos e chimbal, executados
com precisão e leveza, em meio a pontuais toques em bumbo e caixa. Poucos
ataques e entradas mais musculares se fizeram presente em seu som, mostrando
que hoje está distante do que apresentava no David S. Ware Quartet nos anos 90,
quando os fãs da free music o descobriram. Bisio, por sua vez, tocando um baixo
emprestado pela produção, fez do instrumento um campo de batalha. Agitando incansavelmente
o baixo de um lado a outro, utilizando o arco em alguns momentos e abusando da
intensidade impregnada pelos dedos nas cordas, Bisio impressionou o público com
uma apresentação eletrizante. Shipp, que esteve presente na última passagem de Perelman por SP, estava completamente à vontade, exibindo as nuances de seu tocar,
variando ataques robustos ao piano com acordes etéreos sussurrados por seus
dedos que não ignoram espaço nenhum do teclado. Tendo trabalhado em diversos
projetos com o saxofonista nos últimos anos, inclusive em duo, Shipp também
trazia intimidade ampla com baixista e baterista, que formam seu atual trio
(está aí um grupo que mais do que merecia vir mostrar sua música no país). Ver
as mãos de Shipp flutuando pelo teclado, muitas vezes em arcos abertos que
levam seus cotovelos à altura do queixo, é uma experiência ímpar: a genialidade
do mais importante pianista contemporâneo da free music gestando sonoridades de
beleza invulgar, que arrastam nossos sentidos a um campo visitado apenas em
momentos pontuais. Sintonizado com o trio em todas esferas, Perelman conduziu
uma música de maior lirismo, com menos expressões vulcânicas, como as vistas nos
concertos de 2010. O dedo indicador carregando um curativo (acidente doméstico
que fez com que a apresentação fosse adiada em duas semanas) não limitou o
preciso dedilhado do saxofonista, que pôde apresentar sua ampla palheta de
modulações sonoras, que vão do contemplativo a cumes mais incendiados. Sem se apoiar em bases melódicas pré-concebidas, Perelman constrói
seu discurso em meio a oscilações melódicas fugidias, que enganam os
ouvidos; quando parecem que vão se desenvolver em certo rumo, nos guiam para
caminhos inesperados, ampliando a experiência da escuta constantemente durante
o espetáculo. Interessante que agora que o ‘ciclo clariceano’ tenha sido dado
por encerrado, o saxofonista encontre momentos de agudo lirismo, que trazem uma
ácida doçura a suas improvisações, em uma maneira poética de lidar com a
liberdade da música que conduz. Perelman vive um dos momentos mais vibrantes de
sua extensa trajetória e vê-lo ali no palco faz com que, inevitavelmente, o
imaginemos tocando em outro dos contextos que tem explorado recentemente. Seria
ainda mais lírico se fosse apenas um duo com Shipp? O quanto seria mais pesado
se estivesse com os músicos com quem gravou há pouco o álbum “One”? Difícil
explicar para quem não está acostumado com esse tipo de criação como que, sem
ensaio ou temas previamente concebidos, esses músicos conseguem desenvolver uma
longa apresentação sem brechas ou arestas, como se tivessem exaustivamente
praticado o que levariam a público. Mais do que nunca, destacar a polifonia
como pilar desse quarteto é essencial: se qualquer uma daqueles vozes fosse
estirpada ou substituída, teríamos um resultado bastante diverso.
Três saxofonistas dentre os grandes da música contemporânea.
Três experiências sonoro-artísticas que mostram a amplitude da música criativa
e o quanto ela ainda pode nos surpreender.
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*Photo
(Roscoe Mitchell): by Petra Cvelbar
*Photo (Ivo
Perelman): by Peter Gannushkin/Downtownmusic.net