Roscoe Mitchell acabou de completar 73 anos. O saxofonista (multi-instrumentista seria uma definição mais precisa) de Chicago é um dos nomes centrais da free music e, não bastasse ser colíder de um dos mais influentes e longevos combos, o Art Ensemble of Chicago, desenvolveu uma carreira solo bastante ampla e relevante. No Brasil, Roscoe esteve nos últimos tempos em duas oportunidades: em outubro de 2008, com o Art Ensemble of Chicago, e em maio de 2009, como convidado da Exploding Star Orchestra, de Rob Mazurek. Agora o instrumentista (que, além da família dos saxofones, tem história antiga empunhando flauta, clarinete e percussão) retorna ao país para dois concertos no Sesc Pompeia (SP), dias 22 e 23 de agosto, em intimistas concertos solísticos.
A trajetória de Roscoe Mitchell, nascido em 3 de agosto de
1940 em Chicago, está intimamente ligada à AACM (Association for the
Advancement of Creative Musicians), fundada em 1965. Tendo estudado sax desde a
adolescência, Mitchell fez parte do exército e, conta-se, chegou a tocar na
banda militar ao lado de Albert Ayler, quando estavam prestando serviço em uma
base na Alemanha. Em 61, livre do serviço militar, estava de volta à sua
Chicago e antes da formação do mítico coletivo artístico cultural AACM,
Mitchell, na casa dos 20 anos, fez parte da Experimental Band, de Muhal Richard
Abrahms, um dos pioneiros experimentos free daquela região. Em agosto de 1966, surgiria
a oportunidade de gravar seu primeiro álbum, “Sound”, do qual já participaram
alguns dos parceiros (Lester Bowie e Malachi Favors) que logo formariam com ele
o Art Ensemble of Chicago. O título simples do álbum revela mais do que a
princípio possa parecer: o “som” era a pedra de toque para Mitchell e seus
parceiros. Nascidos sob as franjas do free jazz, eles, definitivamente, não
queriam mais bases tradicionais para se expressar; o que buscavam como
parâmetro fundante agora era apenas isso: o som. A investigação sonora proposta
logo neste início acompanharia o saxofonista em sua longa jornada (cinco
décadas de música já!). Mitchell nunca foi adepto puro da energy music ou da
free improvisation. Oscilando entre ruidosidade e silêncio, improvisação livre
e composição, ritmicidade afro e interesse pelo avant-garde erudito, o
instrumentista construiria sua complexa e desafiadora obra.
Na virada dos 60 para os 70, a trajetória de Roscoe vivenciaria
pontos fundamentais para a sua obra: um é a formação do Art Ensemble of Chicago,
que começou a se estruturar entre 67 e 68, para sobreviver até os dias atuais,
se tornando uma de suas marcas indeléveis; outro são os primeiros concertos
solísticos, formato que segue explorando por essas décadas todas; vale ainda destacar
sua mudança para a Europa, mais precisamente Paris, onde viveu entre 69 e 71 e encontrou
o ambiente ideal para desenvolver e ver devidamente degustada sua arte,
gravando uma ampla série de álbuns com o AEC e ao lado de vários músicos
americanos e europeus que fomentavam a cena de então. Seria apenas depois
do retorno a Chicago que Mitchell teria a oportunidade de fazer seu
primeiro registro solístico, “Solo Saxophone Concerts”, gravado em 1973, marco, por vários sentidos, em sua discografia. Data
dessa época também sua (re)aproximação a Anthony Braxton.
Mitchell e Braxton – este cerca de cinco anos mais jovem que
aquele – haviam convivido mais proximamente no início da AACM. Mas, com a
concentração de Mitchell no AEC, acabaram por não trabalhar juntos por um bom
tempo. É curioso que as colaborações entre Roscoe Mitchell e Anthony Braxton se
concentrem na segunda metade dos anos 1970. Apesar de terem começado juntos, nas
mesmas área e época, e desenvolvido trajetórias paralelas de muito respeito na free
music, os dois saxofonistas não fomentaram parcerias muito prováveis. O punhado
de registros que fizeram juntos começa em fevereiro de 76, quando Braxton
reuniu uma big band para um de seus ambiciosos projetos, para a qual entraram mais
de uma dúzia de músicos; dentre esses estava Roscoe. O álbum gestado foi “Creative
Orchestra Music 1976” e dá início a uma tímida sequência de colaborações entre
eles. No ano seguinte, Mitchell lançaria “Nonah”, disco com registros de datas
e músicos variados, com Braxton aparecendo em uma das faixas, gravada em janeiro
de 77. Em setembro de 77, seria a vez de gravarem uma face do disco “For Trio”,
de Braxton, com a participação do também AEC Joseph Jarman. No ano seguinte, Anthony
apareceria em uma faixa de “L-R-G/The Maze”, de Roscoe. E de 79, há “Sketches from
Bamboo”, da Roscoe Mitchell Creative Orchestra, da qual Braxton participa. Após
isso, apenas um encontro casual da dupla em “Angles of Entrance”, do
clarinetista Douglas Ewart, já no ano de 1998 e uma gig aqui, outra acolá
(houve um encontro entre eles na Itália, em 2006, por exemplo)... Nunca ouvi
histórias sobre desentendimentos pessoais e/ou estéticos entre os dois
instrumentistas de Chicago. Mas, infelizmente, colaborações entre eles foram
minguadas.
O encontro central entre os dois geniais
multi-instrumentistas ocorreria no final de 1976, que resultaou em um raro e
esquecido álbum de duetos. Mitchell e Braxton se reuniram no Thunder Sound Studio,
em Toronto, no Canadá. Era 13 de dezembro de 1976. Ambos chegaram ao estúdio
munidos de um arsenal de instrumentos de sopro, família de saxofones completa,
flautas e muitas ideias para serem experimentadas. O resultado se concentrou em cerca de 41 minutos de música, de complexa estruturação, com muito improviso, formando
diálogos ora quentes, ora divagatórios, de ataque-resposta e complementação
sônica, que demonstram a intimidade de rumos exploratórios – mesmo que os dois
nunca tenham chegado a se tornar, de fato, parceiros; o lado A, traz peças de
Roscoe; o lado B, composições de Anthony. As ideias variadas levaram os músicos
a criarem peças bastante precisas e com marcas pontuais. “Five Twenty One Equals
Eight”, que abre o disco, mostra momentos de alternância entre graves e
agudos, o choque entre o sax contrabaixo e a flauta, sons duros e silêncios em
uma criação soturna na qual a espacialidade tem papel não desprezível. A breve “Line Fine
Lyon Seven”, na sequência, traz Roscoe no sax alto, cantarolando uma linha
melódica ondulante sobre a base gravíssima imprimida por Braxton. Em “Seven Behind
Nine Ninety-Seven Sixteen or Seven” os músicos estão mais flamejantes, disparando
dardos ruidosos em uma batalha de variações cacofônicas. Já “Comp. 74A” mostra
a dupla dedilhando flutuações contemplativas nas flautas. E nessa alternância
vai sendo modelado o álbum. Nunca reeditado, este “Roscoe Mitchell: Duets with Anthony Braxton” é um passeio desafiador
pela arte de dois geniais criadores, de gradual e exigente degustação, essencial para
a free music.
“Roscoe Mitchell: Duets with Anthony Braxton”
A1. Five Twenty One Equals
Eight
A2. Line Fine Lyon Seven
A3. Seven Behind Nine Ninety-Seven Sixteen or Seven
A4. Cards Three and Open
B1. Comp. 40Q
B2. Comp. 74A
B3. Comp. 74B
Recorded at Thunder Sound Studio, Toronto on December 13,
1976.
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"ROSCOE MITCHELL - Solo Concerts"
Quando: 22 e 23/8 (21h)
Onde: Sesc Pompeia - Teatro (SP)
Quanto: R$ 20 (inteira)
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"ROSCOE MITCHELL - Solo Concerts"
Quando: 22 e 23/8 (21h)
Onde: Sesc Pompeia - Teatro (SP)
Quanto: R$ 20 (inteira)