Ivo Perelman e Matthew Shipp pertencem à mesma geração.
Ambos começaram a carreira nos anos 1980 e ganharam notoriedade na década
seguinte. Em janeiro de 1996, uniram forças pela primeira vez; entraram em
estúdio e gravaram “Bendito of Santa Cruz”, em duo de sax tenor e piano. O
disco fazia parte da primeira fase da obra de Perelman, na qual o músico
buscava criar um elo entre o free jazz e sonoridades brasileiras. Alguns meses
depois, voltaram a estúdio, desta vez em trio reforçado pela presença do
baixista William Parker, e gravaram “Cama de Terra”. Shipp ainda aparece nos
créditos de algumas faixas de “Aquarela do Brasil” (98), mas trata-se de sobras
do registro de 96. Após esses encontros, Perelman e Shipp se afastaram,
voltando a se encontrar somente em meados de 2010, quando gravaram “The Hour of
the Star”. Desde então, Shipp atuou em diferentes discos recentes do
saxofonista (“The Foreign Legion”, “The Clairvoyant”, “The Gift”). Até que, no
ano passado, decidiram reeditar o formato duo que haviam experimentado cerca de
quinze anos antes.
Em duas sessões realizadas em setembro de 2012, os músicos
gravaram umas duas dezenas de temas de sax e piano. A primeira parte desse
encontro foi reunida no álbum “The Art of the Duet – volume one”, que acaba de ser lançado e que
terá outros dois volumes, a serem editados nos próximos meses.
Shipp sempre
teve no “duo de sax e piano” um de seus formatos prediletos. Basta ver o número
de saxofonistas com quem registrou duetos: Roscoe Mitchell, Rob Browm, Sabir
Mateen, Darius Jones, John Butcher e Evan Parker. Já Perelman gravou em duo apenas
com um outro pianista, Borah Bergman (1933-2012), o disco “Geometry” (97). Curioso
notar que o piano meio que havia sumido da rota de Perelman, que ficou quase
uma década, entre 2001 e 2010, sem gravar acompanhado do instrumento.
The Art of the Duet é um trabalho de diálogos, em que os
instrumentistas interagem de forma orgânica, demonstrando admirável intimidade
expressiva, sem entraves ou desequilíbrios. Não se trata de um espaço para
solos egoísticos: a interação entre sax e piano é o que conduz o encontro. O
que se vê é um embate saudável, entre parceiros, um debate de ideias sem
arestas, que se complementam. E a variedade de resultados é ampla. Há o lirismo
incontido de “Duet #3” (as faixas são nomeadas como ‘duet’ seguido de um
número), no qual o toque satieneano de Shipp cria um traçado horizontal sobre o
qual o sax tenor divaga com vagar. Há a fantástica “Duet #6”, em que o piano
demarca uma minimalista e vibrante pulsação à qual o sax responde de pronto e
incisivamente, ora em sintonia de rumo, ora em ataque direto, ora passando ao
largo e desaguando em ácidos trinados. A abstração total demarca a fraturada “Duet
#10”. E, para encerrar o álbum de maneira tocante, “Duet #13”, que é, na
realidade, uma breve peça solística de Shipp, um belíssimo melancólico epílogo (à
melhor maneira ‘Matthew Shipp solo’) que nos convida a ficar de prontidão para
ouvir os próximos capítulos desse The Art of the Duet.
Em meio a uma de suas fases mais prolíficas, o saxofonista
também está lançando, simultaneamente, outros dois títulos, todos pelo Leo Records e com a
participação de Matthew Shipp.
Em Serendipity temos um quarteto fantástico, com Shipp, o
baterista Gerald Cleaver e o baixista William Parker. Ivo não gravava com
Parker desde os anos 1990 e sua entrada na sessão se deu de forma improvisada. O
álbum deveria ser em trio, mas um dos músicos estava atrasado. As horas corriam
e Ivo não estava a fim de gravar em duo. Então veio a ideia: porque não ligar
para Parker, que morava perto do estúdio, e ver se ele estava à toa, se não
topava encontrá-los para improvisar um pouco? Não muito depois, o baixista
estava no estúdio pronto para gravar. Nesse ponto, o músico atrasado aparece e,
assim, sem planejamento, estava reunido um quarteto fenomenal. Serendipity é
improvisação em sua forma pura: são 43 minutos de diálogo ininterrupto entre o
quarteto. O tema único começa de forma mais serena, com Parker adensando o som
do grupo – esse quarteto esteve no país em 2010 com uma diferença: no lugar de
Parker, estava Joe Morris; é incrível como o resultado é distinto mudando
apenas uma peça do conjunto. Após o tatear dos três minutos iniciais, Ivo
começa a elevar o tom, em um crescendo que se sustenta até os sete minutos,
quando o sopro sai de cena para Shipp solar com folga até os dez minutos. É aí
que o sax retorna de forma fulminante. Entre passagens mais vorazes e pontos de
relaxamanento, a faixa caminha para o pico de voltagem próximo da marca dos 40
minutos. É nessas horas que arrepia lembrar que essa sessão foi única,
improvisada, jamais se repetirá.
O terceiro lançamento é The Edge. Também em quarteto, mas
com outros participantes: ao lado de Ivo e Matthew estão o baixista Michael
Bisio e o baterista Whitt Dickey. Ou seja, é o trio rotineiro de Matthew Shipp
com Ivo Perelman – a diferença fundamental é que o disco é do saxofonista.
Ficou a curiosidade de ver o trio de Shipp no comando com Ivo como convidado...
The Edge é o registro mais facilmente cativante da trinca. É
aquele tipo de disco que você escuta e fica à espera do capítulo dois. Tamanha
é a sintonia entre o quarteto que deveriam, realmente, pensar em retomar a
parceria para outros projetos. O álbum começa com Bisio em tensa introdução ao
arco, recebendo sem pressa a entrada de bateria e sax. Esse é o tom das faixas,
que nunca ocorrem por meio de um ataque ruidoso direto. Os temas se desenvolvem
de forma livre, mas com uma unidade bem demarcada, como se fosse um antigo
conjunto tocando peças ensaiadas exaustivamente. Dickey é um dos bateristas
mais geniais em atividade e sua participação é vital para a arquitetura desse
trabalho. É com e em torno de seu toque, de uma delicadeza bruta, múltiplo e polidirecional,
que os outros instrumentistas expressam suas vozes.
Com essa novo tríptico, Perelman amplia o já vasto
alcance de sua obra (que conta com 45 títulos editados) e nos faz esperar com
ansiedade por um retorno ao país, onde não toca desde 2010...