Se o mundo do free jazz e da improvisação livre como um todo
permanece, com suas cinco décadas de história, turvo, à margem dos esquemas
mais amplos de divulgação e consumo artísticos, algumas figuras desse universo
conseguem ser ainda mais nebulosas, sombreadas pelos nomes maiores do gênero.
Quando se pensa em alguém como Tom Bruno, morto em 22 de agosto do
ano passado, vê-se o quanto ainda é dura e precária a sobrevivência de muitos daqueles
que escolhem viver para sua arte, sem concessões.
Tom Bruno, baterista (que muito entusiasta do free pode
dizer: quem?), canadense de nascimento emigrado para os Estados Unidos na
adolescência, somente desembarcou em Nova York em 1972, atraído pela cena free
que borbulhava na cidade. Por lá travaria amizade com Jemeel Moondoc e William Parker
e montaria, em consonância com o espírito da época, o “New York City Artists’
Collective” (N.Y.C.A.C.), organização sem fins lucrativos que tinha a missão de
agitar encontros e concertos, viabilizar gravações e dar suporte para jovens
interessados se aproximarem da free music. Por meio da N.Y.C.A.C. Records,
criada em paralelo, Bruno editou seu primeiro trabalho, ‘The Sounds of Life’,
em 76, um duo com a vocalista Ellen Christi, então sua esposa. De vida efêmera,
o catálogo da N.Y.C.A.C. Records não chegou à meia dúzia de títulos. Os duros
anos 80, que apertaram ainda mais a situação dos músicos free, em um cenário
adverso que sufocou a promissora cena loft dos 70, fez com que o projeto de Bruno
se dissolvesse; cada vez mais encontrando dificuldades para desenvolver sua
música e por meio dela sobreviver, o baterista viu uma oportunidade no início
dos 80 em um programa da prefeitura de NY, o “Music Under New York”, que
selecionava artistas que tinham interesse em se apresentar nas estações do
metrô. Esse foi seu destino. Uma vez aceito, o baterista fez das plataformas do
metrô seu mais importante e regular palco até os anos 90. Nesse período, Tom
Bruno quase nada gravou, sendo um solitário testemunho o álbum White Boy
Blues, de 81, trabalho solístico no qual se reveza entre bateria, piano e voz.
Curiosamente, seria no subsolo que o instrumentista encontraria o rumo para seu
renascimento. Foi por lá, nas estações de metrô, que travou amizade com dois
saxofonistas que se tornaram grandes parceiros seus: Daniel Carter e Sabir
Mateen. Em meados dos anos 90, após muitas ideias e devaneios e algumas gigs,
resolveram montar o quarteto “Test”, para o qual trouxeram também um jovem
baixista, com seus 20 anos, que havia estudado com William Parker e sempre
circulava pela área, Matthew Heyner. No fim daquela década, o “Test”, já fora
do subsolo, fez uma turnê de grande apelo na cena free pelos EUA, além de ter realizado
quatro registros (gravações de 96, 98 e 99) editados pelos selos Aum Fidelity,
Eremite e Ecstatic Peace. Isso foi o suficiente para sedimentar o nome do
“Test” na história da free music e dar a Bruno uma oportunidade de levar seu
trabalho a mais gente e não ver sua arte ser esquecida no passado. O Test se dissolveu nos anos 2000, em meio a projetos vários com os quais seus integrantes se envolveram. Para Bruno, os últimos
anos foram de progressivo afastamento da música, devido ao Mal de Parkinson de que sofria. Em maio de 2012, cerca de três meses antes de sua morte, ele reuniu os
parceiros de “Test” pela última vez, para o que se tornaria sua derradeira apresentação...
Antes de o 'Test' gravar e demarcar seu espaço no mundo do
free, Tom Bruno e Sabir Mateen resolveram fazer o registro de uma de suas
incontáveis gigs no metrô. Para a 'Grand Central Station' levaram microfone e um
gravador Dat. O dia: 28 de fevereiro de 1995. A hora: 12h48. O tema: improvisação livre, 45 minutos
ininterruptos de um pouco do que vinham criando há anos no local. Em suas incursões no metrô, Bruno
tocava com um kit de bateria bastante reduzido, tendo seu foco em caixa e chimbal
(veja a capa do disco abaixo). Mateen, que gosta de tocar uma variedade de
sopros, estava apenas com um solitário sax. A música gestada não tem os veios
mais nervosos que encontramos no Test – óbvio, senão acabariam expulsos do
metrô por perturbação da ordem... O registro, lançado uns anos depois pela
Eremite, já fora de catálogo, mostra os instrumentistas improvisando focados
em um núcleo menos incendiário, mas que, nem por isso, se torna contemplativo
ou plácido; uma energia relativamente contida, mas envolvente, emana da
apresentação. Ao fundo, discretamente é possível perceber trens chegando à
plataforma ou uma voz anunciando os destinos, porém nada que se sobreponha ou
interfira na música. Mais do que um simples empolgante encontro de sax-bateria,
este Getting Away With Murder é um testemunho de parte da história viva, de tantos percalços,
da free music.