Free Jazz Underground: “Al-Fatihah” (Black Unity Trio, 1969)




Pode soar ruidosamente estranha a associação entre o jazz (música símbolo dos Estados Unidos) e o mundo islâmico especialmente após a (crescente e distorcida) percepção que se estabeleceu depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, associando intrinsecamente Islã e terrorismo. Mas nem sempre foi assim.






Por Fabricio Vieira





Jazz e islamismo. Essa associação nasceu há bastante tempo, sendo identificada ao menos desde a década de 1940. O saxofonista e clarinetista Rudy Powell (1907-1976) foi um dos primeiros a se converter ao Islã e assumir um novo nome, Musheed Karweem. Dizzy Gillespie argumenta em sua autobiografia (“To Be or Not... To Bop”) que muitos músicos se tornaram muçulmanos nos anos 40 e 50, assumindo um nome árabe, não apenas por questões espirituais, mas também por motivos sociais. Além de encontrarem um ambiente que se revelava mais igualitário no Islã, sem o preconcentio racial que marcava a rotina dos músicos negros, era mais interessante carregar naquela época, segundo conta Dizzy, uma nova carteirinha de músico, com um nome muçulmano. Isso ajudava a contornar certos transtornos motivados por preconceitos raciais. De qualquer forma, fato é que figuras futuramente conhecidas foram rebatizados na religião muçulmana ainda nos tempos da eclosão bebop/hard bop. Alguns preferiram manter seus nomes artísticos, mesmo tendo sido rebatizados no Islã, como Art Blakey (Abdullah Ibn Buhaina), Kenny Clarke (Liaquat Ali Salaam) e McCoy Tyner (Sulaimon Saud). Outros seriam conhecidos pela posteridade apenas por suas assinatuiras muçulmanas, como Yusef Lateef (nascido William Emanuel Huddleston), Sahib Shihab (Edmund Gregory) e Amhad Jamal (Frederick Russell Jones).
Um fato interessante é que parte desses músicos aderiram ao Islã por meio de escolas heterodoxas, por vezes polêmicas e mesmo hostilizadas nos centros islâmicos mais tradicionais. Primeiramente, a Ahmadiyya Muslim Community atraiu muita gente, como Lateef. Depois, seria a vez da Nação do Islã ('Nation of Islam' ou apenas NOI) exercer seu poder de sedução. A relação de Malcolm X (Al Hajj Malik Al-Habazz, 1925-1965) com a Nação do Islã, que durou até perto do fim de sua vida, levou muitos negros ativistas a se aproximarem da doutrina - afinal, um dos mais inflamados, contagiantes e potentes líderes da causa negra havia aderido à NOI e ao islamismo. Malcolm X deixou a NOI em 1964, mas sem que isso significasse uma ruptura com o mundo islâmico: ele  fundou sua própria congregação muçulmana, a Muslim Mosque Inc. (MMI), que acabaria se dissolvendo após sua morte. A mitologia professada pela Nação do Islã, que afirmava que a raça humana era constituída apenas por negros em seus tempos primeiros, sendo o homem branco uma degeneração da raça inicial e que depois a escravizou, teve forte apelo, mesmo que simbólico, nos intensos e combativos anos 60, quando artistas do free jazz passaram a encarar frontalmente sua missão afirmativa em meio às lutas pelos direitos sócio-raciais tão intensas então.

Um dos mais destacados nomes do black cultural nationalism, o incendiário poeta/ativista LeRoi Jones passou de parceiro dos beatniks nos anos 50 a furioso defensor da causa negra (e por tabela do free jazz) nos anos 60, adentrando o mundo muçulmano e renascendo como Amiri Baraka. No universo do free jazz, se o discurso panafricano e libertário passou a ser comum a todos, houve também alguns que se tornaram muçulmanos e abandonaram seus “nomes de escravos”, como muitos diziam na época. Os irmãos bateristas Rashied Ali e Muhammad Ali (Robert e Raymond Patterson, que se converteram ainda jovens junto com a família) estão entre os mais lembrados nomes do free ligados ao mundo muçulmano. Mas a lista é completada por vários outros representantes: os trompetistas Olu Dara (Charles Joes III) e Ahmed Abdulla (Leroy Bland); o saxofonista Kalaparusha Ahra Difda (Maurice McIntyre); o baterista Pheeroan AkLaff (Paul Mattox); o baixista Saheb Sarbib (Jean Henri Sarbib); o guitarrista Jamaaladen Tacuma (Rudy McDaniel); o percussionista Hamid Drake (Henry Drake); e mesmo o pianista Abdullah Ibrahim (Adolph ‘Dollar’ Brand, não propriamente um representante do free, mas com destacados encontros nessa seara).


Um grupo em especial deixou sua mensagem islâmica bem demarcada no mundo do free jazz: o Black Unity Trio, formado em Cleveland, Ohio, no fim dos anos 1960, por Yusuf Mumin (Joe Phillips, sax), Abdul Wadud (Ron DeVaughn, violoncelo) e Haasan-Al-Hut (percussão).
De vida efêmera, a obra do trio se resumiu a uma gravação, este “Al-Fatihah”. Tampouco há histórias sobre shows, ensaios ou seja o que for sobre o Black Unity. Nem mesmo a data exata desta gravação única se sabe; especialmente pelo trabalho desenvolvido depois por Wadud, pode se inferir que o disco foi registrado lá por 1969.
Dentre seus três integrantes, apenas o violoncelista Abdul Wadud seguiria carreira, tendo participado de gravações várias com David Murray, Oliver Lake, Muhal Richard Abrams, Julius Hemphill, Arthur Blythe, Leroy Jenkins e outros mais. Já o saxofonista Yusuf Mumin apareceu apenas em uma outra gravação, o clássico “Burn, Baby, Burn”, de 68, ao lado do trompetista Norman Howard. Naquele disco, ele assinava ainda como Joe Phillips. Não se sabe o que fez da vida depois... E o percussionista Haaasan-Al-Hut é um completo desconhecido, esta é sua única aparição no mundo do free jazz...

Além dos nomes de seus integrantes, o Black Unity Trio trazia a fé muçulmana estampada em outros pontos. Primeiramente, há o nome da gravadora independente que criaram para lançar o disco: Salaam Records (em árabe, ‘Salaam’ significa ‘Paz’). No alto da capa e na contracapa, há estampado o símbolo do Islã: uma meia lua com uma estrela. E o título do álbum é o ponto nevrálgico: “Al-Fatihah”. Este é o nome da primeira sura, que abre o Alcorão – as suras são os capítulos do Alcorão, sendo o livro composto por um total de 114. Cada sura é dividida em versículos, como ocorre com os capítulos da Bíblia cristã. Al-Fatihah (que pode ser traduzido como “A Abertura”) é uma das mais breves suras e conta com apenas 7 versículos de louvor que poderiam fazer parte de qualquer um dos livros sagrados das três grandes religiões monoteístas. Na abertura do lado B do disco, há uma breve peça (a terceira faixa aqui) chamada “Opening Prayer”, na qual uma voz recita (provavelmente) esta sura.
Em português, a Al-Fatihah diz:


1. Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.
2. Louvado seja Deus, Senhor do Universo,
3. Clemente, o Misericordioso,
4. Soberano do Dia do Juízo.
5. Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda!
6. Guia-nos à senda reta,
7. À senda dos que agraciaste, não à dos abominados, nem à dos extraviados.


Além desses pontos, o disco soa e se desenvolve como uma obra free jazzística, com peças marcadas por improvisação intensa e ruidosidade características do gênero. Os temas se apresentam em formas similares, começando de maneira mais contemplativa e se expandindo por núcleos de maior energia expressiva. Certo suave sabor oriental ecoa do sax de Mumin nos momentos mais sutis. Um grande disco obscuro, perdido no tempo, testemunho de momentos vitais da música livre. 

(Al-Fatihah tem se revelado uma verdadeira raridade do free jazz. Nunca reeditado (saiu com umas 500 cópias à época), apareceu em um leilão no Ebay, em 2009, por US$ 338,00. No mês passado, outra cópia original do disco surgiu, sendo leiloada na internet e arrematada por nada menos que US$ 1.025,00.)





BLACK UNITY Trio - "Al-Fatihah"



*Yusuf Mumin: sax alto
*Abdul Wadud: cello, bass
*Haasan-Al-Hut: percussion




Recorded at Agency Recording Studio, Cleveland











----------------------------
Free Jazz Underground é uma série que busca resgatar e apresentar álbuns esquecidos, nunca reeditados, de artistas que, de alguma forma, contribuíram para o desenvolvimento da música livre.