"O Perseguidor": Cortázar na trilha do jazz







"O Perseguidor"
Julio Cortázar

*Editora: Cosac Naify
*Tradução: Sebastião Uchoa Leite



Auto-exilado em Paris em meados dos anos 1950, Julio Cortázar (1914-1984) teve a oportunidade de vivenciar de perto uma de suas paixões: o jazz. A capital francesa era naquela época um importante centro de atração para jazzistas americanos, que encontravam ali um público ávido pela música que faziam. E foi nesse período que o escritor argentino gestou uma de suas mais saborosas criações: “O Perseguidor”.

Livremente inspirado na vida do saxofonista americano Charlie Parker (1920-1955), “O Perseguidor” foi editado em 1959. Essa pequena obra-prima demarca o início da melhor fase de Cortázar, que logo traria à luz seu clássico máximo, “O Jogo da Amarelinha” (63).
O extenso conto – originalmente publicado ao lado de outros textos na coletânea “As armas secretas” – apresenta os últimos tempos de um saxofonista tão genial quanto autodestrutivo, Johnny Carter, conduzido pelos olhos do narrador Bruno, crítico de jazz e biógrafo do artista. A história de Johnny se confunde com a de vários gênios do jazz, artistas sublimes, incompreendidos e falidos, que viveram apenas em função de sua música, buscando algo que dificilmente poderiam alcançar, uma impalpável transcendência que só certas figuras vislumbram.
“O Perseguidor” se inicia com Johnny combalido, esgotado, sem sax ou dinheiro, deitado em uma cama de um hotel barato em Paris. O leitor é apresentado, prontamente, à face suja do músico, sendo convidado a compartilhar, a se aproximar de seus infortúnios. Aos poucos, entre idas e vindas, encontros e longos diálogos, Bruno vai descortinando as nuances dessa personalidade condenada, delirante e embriagada, mas também genial e única.


Quem conhece de antemão a vida de Parker, certamente a enxergará reencenada nas páginas de “O Perseguidor”. Sem esconder sua inspiração primeira, Cortázar fez questão de colocar na dedicatória da obra “In memoriam Ch. P.”. Anos depois de lançada a obra, Cortázar, em entrevista a Ernesto González Bermejo (“Conversas com Cortázar”, Ed. Jorge Zahar), foi além, revelando a arquitetura do enredo: “Não podia usar o seu nome: não tinha direito. Dei apenas uma piscadela aos leitores na dedicatória. Mudei o seu nome, mas uma boa parte dos episódios vividos por Johnny Carter ocorreu de fato com Charlie Parker (...). Peguei portanto os dados biográficos e situei-os em Paris, porque a conhecia melhor do que Nova York e consegui fazer meu relato caminhar”. Todavia, essa proximidade não tira a independência da narrativa de Cortázar, que sobreviveria com o mesmo impacto mesmo se Parker não fosse seu modelo.

Em sua convivência íntima com o músico em sua fase parisiense, antes de retornar aos EUA para morrer, o narrador Bruno compreende aos poucos que o saxofonista não é, na realidade, um perseguido, uma figura injustiçada pela sociedade que não o compreende, como antes achara, na época em que preparava a biografia do músico. “Agora sei que não é assim, que Johnny persegue em vez de ser perseguido, que tudo que lhe está acontecendo na vida são azares de caçador e não de animal acossado”, diz Bruno, em momento de iluminação embebida pelo solo de um novo tema gravado pelo saxofonista. O perseguidor Johnny Carter, com seu sax infinitamente buscando uma música reveladora de uma verdade última que pressentia, mas que jamais alcançaria, com seus solos livres de regras e pontuações, sucumbe à sua vida desregrada e de vícios, como ocorreu com seu modelo real.

Em “O Perseguidor” a arquitetura ainda é menos ousada do que a exibida em obras posteriores do autor. No entanto, o conto tem papel de relevo no percurso estético de Cortázar, demarcando novas possibilidades artísticas que o escritor argentino desenvolveria mais à frente. A experiência do conto seria aprofundada por Cortázar ao levar a noção de improviso jazzístico para a estrutura fragmentada e não linear de livros como o citado “O Jogo da Amarelinha” ou mesmo “62: modelo para armar”, obras que convidam o leitor a improvisar, a criar seu próprio rumo de leitura e fruição.

A edição de O Perseguidor lançada pela Cosac Naify traz ainda ilustrações do desenhista argentino José Muñoz, que ajudam a potencializar o clima soturno que permeia a história de Johnny. Falta apenas a trilha sonora. Cabe, então, ao leitor resgatar um disco de Parker e fazer da leitura de “O Perseguidor” uma experiência sublime.

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*Uma versão desta resenha foi publicada no jornal Valor Econômico.