Omaggio a David S. Ware (1949-2012)


DAVID SPENCER WARE

O mundo está mais tristemente silencioso.



(David S. Ware Quartet, "Ganesh Sound", Live in Vilnius 2007)



Um dos (poucos) reais gênios (é nessas horas que vemos o desgaste das palavras, usadas tantas vezes com critério frouxo) do sax tenor morreu no último dia 18 de complicações decorrentes do transplante de rim que fez em maio de 2009. Mr. David Spencer Ware havia retomado sua vida de músico após a complexa intervenção médica, mais magro e frágil, sim, mas com imaginação criativo-sonora irretocável, tendo nos presenteado desde então com nada menos que cinco novos álbuns. Parecia que o momento mais crítico para sua saúde tinha ficado para trás. Cruel engano.


Como tantos outros talentos criadores, David S. Ware quase que ficou pelo caminho: nascido em New Jersey, em 7 de novembro de 1949, o músico adentrou a cena jazzística em meados dos anos 1970 de forma promissora: gravou seu primeiro álbum como líder, “Birth of a Being”, aos 27 anos, período em que também acompanhava a ‘Unit’ de Cecil Taylor e o ‘Maono’ de Andrew Cyrille. Mas logo a década acabou e com ela as coisas definharam, certo ostracismo foi inevitável, o que quase encerrou sua carreira, levando-o a virar taxista para sobreviver durante os anos 1980. O saxofonista apenas teria a oportunidade de entrar novamente em um estúdio para conceber um álbum seu em 1988, quando nasceu “Passage to Music”. A próxima parada, “Great Bliss” (90), traria o formato quarteto (já amparado pelos escudeiros William Parker e Matthew Shipp), que acabaria por imortalizar seu trabalho e o acompanhar até 2007.
Ware foi um instrumentista que manteve de forma visceral o espírito do free jazz sessentista. Não que ele revisitasse formatos antigos ou se mantivesse preso a um universo passado. Sua música era (é) extremamente fresca, única e atual. Mas sua obra descende diretamente daqueles tempos (seria ele o ideal “Son” do tríptico formado por Trane e Ayler?), mantendo viva em alta voltagem a espiritualizada intensidade daquela era. Não à toa, um crítico apontou seu quarteto dos anos 90 como o grupo mais importante neste formato desde o ‘Coltrane Quartet’. Como mestre maior que foi, Ware criou um cosmo sonoro particular, de brilho e identidade só seu, que estabelecia conexões precisas com figuras seminais passadas, mas que soava como nunca dantes: quem aprende a identificar seu sopro jamais irá confundi-lo com o de outro. Elo essencial entre a época fundadora do free jazz e a contemporaneidade, Ware criou uma arte livre, liricamente ácida, que optava por se desenvolver prioritariamente a partir de estruturas melódicas armadas que se desmembravam por labirintos improvisativos. A composição, mesmo que minimalistas temas fossem a base de partida, está na raiz de sua obra. Nesse processo, gestou temas encantatórios como “Aquarian Sound”, “Godspelized” e “Ganesh Sound”.

Descobri Ware relativamente tarde, apenas quando lançou “Renunciation” (2007), álbum-símbolo do fim de uma era, capítulo conclusivo de seu inigualável quarteto – sem dúvida, combo tão fundamental para a história da música quanto o ‘Coltrane Quartet’ e o ‘Miles Davis Quintet’. Inacreditavelmente, muitos “historiadores e críticos” ainda ignoram tal fato, tal música... Apenas certa gagueira auditiva pode explicar o porquê de Ware ter permanecido à margem toda sua vida e jamais ter pisado em nossos palcos (bem, isso é mais fácil de entender...). A abertura de sua obra, que nunca se caracterizou pelo abstracionismo ou pontuações ‘noise’, seduziu figuras díspares como Branford Marsalis (que chegou a levá-lo para gravar na mainstream Columbia no fim dos 90) e Thurston Moore (que colocou o David S. Ware Quartet para abrir shows do Sonic Youth). Ware, apesar de ter uma obra centrada e coerente, foi um artista aberto que se embrenhou pela improvisação livre (basta ouvir seus discos solistas), releu standards (fez versões demolidoras para “Autum Leaves”, “Tenderly” e dedicou um disco à “Freedom Suite” de Sonny Rollins), testou certa liberdade ‘modern creative’ (“Corridors & Parallels” e “Threads”).
Com a morte de David Spencer Ware, um capítulo central da música contemporânea se encerra. RIP


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**Os próximos dias serão dedicados à memória de David S. Ware.