DAVID SPENCER WARE
O mundo está mais tristemente silencioso.
(David S. Ware Quartet, "Ganesh Sound", Live in Vilnius 2007)
Um dos (poucos) reais gênios (é nessas horas que vemos o
desgaste das palavras, usadas tantas vezes com critério frouxo) do sax tenor
morreu no último dia 18 de complicações decorrentes do transplante de rim que
fez em maio de 2009. Mr. David Spencer Ware havia retomado sua vida de músico
após a complexa intervenção médica, mais magro e frágil, sim, mas com
imaginação criativo-sonora irretocável, tendo nos presenteado desde então com
nada menos que cinco novos álbuns. Parecia que o momento mais crítico para sua
saúde tinha ficado para trás. Cruel engano.
Como tantos outros talentos criadores, David S. Ware quase
que ficou pelo caminho: nascido em New Jersey, em 7 de novembro de 1949, o
músico adentrou a cena jazzística em meados dos anos 1970 de forma promissora:
gravou seu primeiro álbum como líder, “Birth of a Being”, aos 27 anos, período
em que também acompanhava a ‘Unit’ de Cecil Taylor e o ‘Maono’ de Andrew
Cyrille. Mas logo a década acabou e com ela as coisas definharam, certo
ostracismo foi inevitável, o que quase encerrou sua carreira, levando-o a virar
taxista para sobreviver durante os anos 1980. O saxofonista apenas teria a
oportunidade de entrar novamente em um estúdio para conceber um álbum seu em
1988, quando nasceu “Passage to Music”. A próxima parada, “Great Bliss” (90),
traria o formato quarteto (já amparado pelos escudeiros William Parker e
Matthew Shipp), que acabaria por imortalizar seu trabalho e o acompanhar até
2007.
Ware foi um instrumentista que manteve de forma visceral o
espírito do free jazz sessentista. Não que ele revisitasse formatos antigos ou
se mantivesse preso a um universo passado. Sua música era (é) extremamente
fresca, única e atual. Mas sua obra descende diretamente daqueles tempos (seria
ele o ideal “Son” do tríptico formado por Trane e Ayler?), mantendo viva em
alta voltagem a espiritualizada intensidade daquela era. Não à toa, um crítico
apontou seu quarteto dos anos 90 como o grupo mais importante neste formato
desde o ‘Coltrane Quartet’. Como mestre maior que foi, Ware criou um cosmo
sonoro particular, de brilho e identidade só seu, que estabelecia conexões
precisas com figuras seminais passadas, mas que soava como nunca dantes: quem
aprende a identificar seu sopro jamais irá confundi-lo com o de outro. Elo
essencial entre a época fundadora do free jazz e a contemporaneidade, Ware
criou uma arte livre, liricamente ácida, que optava por se desenvolver
prioritariamente a partir de estruturas melódicas armadas que se desmembravam
por labirintos improvisativos. A composição, mesmo que minimalistas temas
fossem a base de partida, está na raiz de sua obra. Nesse processo, gestou
temas encantatórios como “Aquarian Sound”, “Godspelized” e “Ganesh Sound”.
Descobri Ware relativamente tarde, apenas quando lançou
“Renunciation” (2007), álbum-símbolo do fim de uma era, capítulo conclusivo de
seu inigualável quarteto – sem dúvida, combo tão fundamental para a história da
música quanto o ‘Coltrane Quartet’ e o ‘Miles Davis Quintet’. Inacreditavelmente,
muitos “historiadores e críticos” ainda ignoram tal fato, tal música... Apenas
certa gagueira auditiva pode explicar o porquê de Ware ter permanecido à margem
toda sua vida e jamais ter pisado em nossos palcos (bem, isso é mais fácil de
entender...). A abertura de sua obra, que nunca se caracterizou pelo
abstracionismo ou pontuações ‘noise’, seduziu figuras díspares como Branford
Marsalis (que chegou a levá-lo para gravar na mainstream Columbia no fim dos
90) e Thurston Moore (que colocou o David S. Ware Quartet para abrir shows do
Sonic Youth). Ware, apesar de ter uma obra centrada e coerente, foi um artista
aberto que se embrenhou pela improvisação livre (basta ouvir seus discos
solistas), releu standards (fez versões demolidoras para “Autum Leaves”,
“Tenderly” e dedicou um disco à “Freedom Suite” de Sonny Rollins), testou certa
liberdade ‘modern creative’ (“Corridors & Parallels” e “Threads”).
Com a morte de David Spencer Ware, um capítulo central da música contemporânea se encerra. RIP
Com a morte de David Spencer Ware, um capítulo central da música contemporânea se encerra. RIP
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**Os próximos dias serão dedicados à memória de
David S. Ware.