O quarteto foi o formato por excelência que marcou a obra de
David Spencer Ware. Foi ao lado de piano, baixo e bateria que o saxofonista
realizou a maior parcela e os pontos mais elevados de sua vida musical. Ware
reuniu pela primeira vez seu quarteto em 1990, durante as sessões (9 e 10 de
janeiro) das quais saíram os dois volumes de “Great Bliss”. A seu lado, já estavam
Matthew Shipp (piano) e William Parker (baixo), que o acompanhariam
ininterruptamente até 2007. Nas baquetas, Marc Edwards, antigo companheiro dos
anos 1970 e dos tempos de "Apogee". “Great Bliss” já mostra o grupo em bom
entrosamento, com temas encantatórios (como “Bliss Theme”) sinalizando o que
viria depois. Neste álbum, Ware ainda se divide entre sax tenor, flauta,
saxello e strich (instrumentos pouco usuais, mais lembrados por fazerem parte
do arsenal do excêntrico Roland Kirk (1935-1977). No ano seguinte, o quarteto
entraria em estúdio para gerar “Flight of I”, registro que já mostra toda a
potência do grupo (do lirismo ácido-espiritual de “Aquarian Sound” ao
abstracionismo corrosivo da faixa-título). Neste disco, captado em dezembro de
91, Ware passa a se concentra no sax tenor, atitude que manteria pelas duas
próximas décadas – somente após 2009, findo seu quarteto clássico, é que ele
resgata outros instrumentos de sopro (saxello, strich e sopranino) para
compor seu arsenal.
David S. Ware praticamente não tocou outras parcerias ou
projetos enquanto durou seu quarteto – ou seja, entre 1990 e 2007. Pode-se até
afirmar, errando apenas marginalmente, que ele, nessas quase duas décadas,
tocou somente com um pianista (Shipp) e um baixista (Parker). Apenas na bateria
houve mudanças. Passaram pelo quarteto, em ordem: Marc Edwards (até 91); Whit Dickey
(92-96); Susie Ibarra (96-99); e Guillermo E. Brown (99-2007) – em junho de
2003, Hamid Drake substituiu Brown em dois concertos na Europa. Em todo esse
período, há registros de apenas um show de Ware com Rashied Ali (duo) e algumas
apresentações solistas: o quarteto centralizava e praticamente resumia sua vida
musical.
Ware declarava que sempre desejou ter um grupo fixo para
desenvolver suas idéias artísticas na potência máxima, algo que, segundo ele,
faltava no free jazz, seara marcada mais por colaborações e parcerias
múltiplas.
Tal foco no quarteto permitiu que a unidade perfeita do
conjunto se estabelecesse e fizesse com que brotasse sequencialmente discos
preciosos e irretocáveis, algumas das obras fundamentais da história do free
jazz e exemplares centrais da música criativa feita na década de 90. Basta
ouvir os fantásticos discos realizados entre 94 e 96, em uma sequência na qual
foram gestados alguns de seus capítulos essenciais: “Earthquation” (maio de
94); “Cryptology” (dezembro de 94); “Oblations and Blessings” (setembro de
95); “Dao” (setembro de 95); “Godspelized” (maio de 96); e “Wisdom of
Uncertainty” (dezembro de 96). Em qualquer um desses álbuns se encontram
parcelas do que de melhor fizeram, arte que engloba energy music, improvisação,
temas marcantes, melodias encantatórias, técnica, liberdade, tudo acoplado em
um diálogo uno, polifonia na qual a genialidade de cada membro do conjunto tem
seu espaço de expressão, ao mesmo tempo em que são peças fundamentais para a
construção do todo. A multiplicidade do grupo fica clara quando se ouve os dois
discos gravados em setembro de 95. “Oblations and Blessings”, captado nos dias
27 e 28, mostra a face mais incendiária, energy music do quarteto. Já “Dao”,
gravado no dia 29, traz a mais complexa construção da banda, na qual todas as
suas qualidades se unem para gerar um trabalho de equilíbrio extremo em sua multiplicidade
criativa.
Apesar de ter existido até março de 2007, quando realizou
sua última passagem pela Europa (da qual surgiu o álbum “Live in Vilnius”,
editado em vinil em 2009), o quarteto de Ware perdeu fôlego e foi se extinguido
desde o começo dos anos 2000. “Surrendered”, registrado em outubro de 1999,
segundo e último álbum do trio lançado por uma grande gravadora (Columbia), pode
ser encarado em certo aspecto como o capítulo final de um ciclo. Sendo o
trabalho mais melódico e jazzístico do grupo (traz até uma versão para “Sweet
Georgia Bright”, de Charles Lloyd), “Surrendered” recebeu críticas no sentido
de representar um afrouxamento na pegada do grupo, uma forma de ser menos
nocivo aos ouvidos do público da Columbia. Mas o disco, mesmo sendo menos
pesado, traz momentos belíssimos: “Theme of Ages” e “Surrendered” se sintonizam
com o universo dos primeiros trabalhos de Alice Coltrane (1937-2007), enquanto
“Glorified Calypso” swinga de forma contagiante em homenagem a Sonny Rollins.
O quarteto ainda gravaria três álbuns de estúdio, registros
diferentes que apontam a tentativa de busca de um novo rumo, um respiro em um relacionamento que não mais rendia como antes.
Em fevereiro de 2001, nascia “Corridors & Parallels”. Além da mudança na
batida de Brown, fraturada, nada jazzística, o álbum traz Shipp tocando apenas
sintetizadores, nada de piano, dando uma outra textura ao grupo. “Corridors
& Parallels” meio que anuncia o projeto “Nu Bop” que Shipp tocaria meses depois,
mas sem alcançar o mesmo efeito. O disco traz Chris FLAM cuidando de
som/mixagem – o mesmo que produziria os bem sucedidos discos “Nu Bop” e “Equilibrium”
de Shipp. “Corridors & Parallels” funciona mais como um teste, uma
tentativa de variação que não os levou muito distante. O máximo que se pode
dizar da obra é “interessante”... Não à toa, o quarteto não levou o trabalho
para o palco e nunca mais repetiu o esquema. O quarteto retomaria sua estrutura
original para revisitar a “Freedom Suite” de Sonny Rollins, em gravação de julho de 2002, em
uma releitura extensa (cerca de 40 minutos) e bem livre – peça que tocariam ao
vivo em algumas oportunidades.
Em 2003 seria a vez do último registro de estúdio do grupo
nascer. Mais uma vez à procura de uma nova trilha a seguir, Ware convida outros dois nomes
para participarem da gravação (algo inédito): Matt Maneri (viola) e Daniel
Bernard Roumain (violino). Em 28 de abril de 2003, entram no estúdio para
gravar “Threads”, creditado ao “David S. Ware String Ensemble”, não mais ao “Quartet”
que centralizava sua obra há mais de uma década. Outra particularidade: Ware
não participa como instrumentista da sessão de abril, apena a dirige. Os saxes
que aparecem no disco seriam adicionados depois, apenas em junho. Se “Corridors
& Parallels” já era um disco fora do eixo da discografia de Ware, “Threads”
mantém o processo especulativo e tenta decifrar outras possibilidades sonoras.
Alguns temas mais marcantes, como “Sufic Passages” e “Weave” se destacam, mas
destoam (sem superar, longe disso) do conjunto da obra.
O quarteto não mais voltaria a estúdio e também passaria a
tocar menos ao vivo. Seus integrantes, especialmente Shipp e Parker, conduziam
diferentes projetos na época e a dedicação ao “David S. Ware Quartet” não podia
mais ser a mesma.
Após um 2005 silencioso, o quarteto fez um concerto em junho
de 2006 no Vision Festival, registrado no álbum “Renunciation”, que foi
considerado como a despedida do grupo – até que em 2009 chegasse ao mercado o
vinil “Live in Vilnius”, com um registro gravado em 24 de março de 2007, que
passou a ser encarado como o testamento final do quarteto.
O David S. Ware Quartet não deixou muitos testemunhos ao
vivo (são três álbuns oficiais) e não são variados os bootlegs/audience recording a circularem por aí. Nesse
registro de 2003, podemos apreciar o grupo em voltagem precisa, entoando temas
de diferentes épocas, com intensidade reservada, em tom até mais contido, mas música
essencial, fração de um tempo agora definitivamente encerrado.
1. Surrendered
2. unknown/improvisation
3. Mikuro's Blues
4. Bliss Theme
5. African Drums
*David S. Ware: tenor sax
*Matthew Shipp: piano
*William Parker: bass
*Guillermo E. Brown: drums
*Matthew Shipp: piano
*William Parker: bass
*Guillermo E. Brown: drums
Recorded live at Club La Palma, Rome/Italy, March 26, 2003.
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Photo by Jimmy Katz