Milford Graves: 71 anos de percussão livre


Milford Graves chegou aos 71 anos. Foi em um 20 de agosto, mais precisamente em 1941, no Queens (NY), que um dos percussionistas seminais do free jazz veio ao mundo. Graves jamais escapou do underground, jamais diluiu sua música ou recebeu reconhecimento amplo. Inevitavelmente, assim, momentos importantes de sua história estão perdidos; muito de sua criação não chegou a ser registrada; discos essenciais deixaram de receber reedições... Mas, o que realmente importa: ao lado de Sunny Murray, Andrew Cyrille e Rashied Ali, Milford se tornou um dos pilares da percussão free jazzística.

Mestre de uma linhagem da qual brotaram, direta ou indiretamente, instrumentistas essenciais da contemporaneidade, como Susie Ibarra e Hamid Drake, Graves começou seu contato com a bateria ainda na infância, em casa, em um kit que seu pai mantinha na sala. Na adolescência, foi apresentado ao universo percussivo latino, aprendendo a tocar congas com um rapaz da vizinhança. Antes de se tornar músico profissional, nos anos 60, também encontrou a tabla indiana, que estudaria com seriedade mais à frente. Entre 59 e 62, esteve em Long Island, envolvido com bandas de latin/afro cuban jazz – essa curiosa faceta pode ser conhecida em um disco de 64 chamado “Arriba!”, do percussionista jamaicano Montego Joe, do qual também participou Chick Corea. Ainda nessa época, Milford desembarcaria em Boston, onde conheceu Giuseppi Logan, que anunciaria a ele um novo universo, o do free jazz nascente. Logo dragado pela incandescente cena da free music, Graves daria início a uma trajetória que se mantém íntegra até os dias atuais. Seria em outubro de 64 que faria seu primeiro registro free, ao lado de Logan, para o nascente ESP-Disk; ainda naquele ano, se tornaria um dos integrantes do seminal “New York Art Quartet”, junto com Roswell Rud e John Tchicai. No decorrer dos 60’s, viriam associações com Bill Dixon, Paul Bley (“Barrage”), Don Pullen (“Nomo”), Albert Ayler (“Love Cry”), Sonny Sharrock (“Black Woman”)…

Se falar em ‘baterista’ para se referir a muitos nomes da free music soa certamente equivocado, devido à amplitude do trabalho que desenvolvem, no caso de Graves isso é ainda mais evidente. O universo amplo da percussão sempre esteve em seu foco central. Quando foi convidado por Bernard Stollman a gravar um disco seu para o ESP, não teve dúvidas: gestou “Percussion Ensemble” (65) ao lado de Sunny Morgan, um álbum apenas com instrumentos de percussão. Nos créditos, junto a seu nome, estão ‘drums, bells, gong, shaker’, o que ilustra a abertura que buscava e que marcaria seu trabalho adiante. Desde esses tempos primeiros, o músico foi estruturando um aparato percussivo diversificado, necessário à sua música, e que muito deve, além da herança afro-americana, a pesquisas em sonoridades outras, um olho no oriente, tabla, gongos e congas. Junto a isso, Graves adicionou vocalizações e gestuais particularíssimos, que fazem de seu estilo algo realmente único. Esse percurso percussivo de pesquisas constantes o levou a se aliar a Andrew Cyrille no final da década de 60 para concertos em duo. Nascia ali o ‘Institute Of Percussive Studies’, por meio do qual organizavam workshops e concertos, além de servir de base para um selo independente. Os míticos duos de percussão de Graves e Cyrille, do qual restou o registro oficial “Dialogue of the Drums’ (69/74), marca a liberdade total do instrumento que, pouco antes, era relegado à ‘cozinha’ do jazz. Na virada dos 60/70, chegaram a realizar apresentações em trio de percussão, adicionando o mito Rashied Ali e criando momentos de impacto único, dos quais restaram apenas testemunhos escritos, nada do som mágico que devem ter produzido...


(Milford Graves Quartet,  at Belgium, August 15, 1973)


Com o nome estabelecido no meio, Graves teve nos anos 1970 alguns de seus momentos mais vibrantes, época em que começou também a dar aulas no Bennington College. Infelizmente, quase não há registros da época. Um de seus parceiros principais no período era o ‘multi-reedman’ Hugh Glover, um desconhecido saxofonista de origem do qual praticamente não restaram informações. Frank Lowe e Arthur Doyle foram outros que estiveram com ele naquela década. Dos poucos registros oficiais dos anos 70 em que aparece seu nome, há uma faixa de 11 minutos, um duo com Hugh Glover, na coletânea “New American Music”, editado em 75. De álbuns, existe “Meditation Among Us” (77), gravado no Japão com os ícones Kaoru Abe e Toshinori Kondo. E o espetacular “Babi Music” (76), captado em 20 de março de 1976 no WBAI-Free Music Store, em NY, trio com Glover e Doyle nos sopros, que recebeu apenas uma edição em vinil na época: mesmo sendo um dos testemunhos mais impressionantes da free music setentista, nunca foi reeditado.
Após uma década de 80 também tímida em registros, na qual se destaca “Pieces of Time” (83), um quarteto de percussão que contou com Cyrille, Don Moye e Kenny Clarke, Graves iniciou os anos 90 com uma bela gravação em duo com o saxofonista David Murray, “Real Deal” (91).


Durante os anos 90, foi importante para o músico a associação que fez com John Zorn. Pelo selo Tzadik, de Zorn, o percussionista lançou dois trabalhos solos, “Grand Unification” (98) e “Stories” (2000), nos quais apresenta seu amplo jogo percussivo e ritualístico. Em duo com Zorn, Milford fez algumas apresentações em 99; em 2003, gravaram juntos como parte das celebrações dos 50 anos do saxofonista.
Um dos encontros de Graves e Zorn aconteceu em 27 de maio de 1999, na Mary Hope Christian Church, em NY. Foram cerca de 50 minutos de improvisação, repartidos em seis temas que foram captados por algum anônimo. A gravação nunca foi editada oficialmente, mas sobreviveu para circular e apresentar um pouco da vibrante noite protagonizada pela dupla. Graves com todo seu aparato percussivo e vocalizações únicas, acompanhado pelo áspero e ligeiro sax de Zorn. Música livre unindo o free primeiro com sua face contemporânea. Milford Graves, 71 anos de percussão livre.