Quem tem medo de Peter Brötzmann? (II)


Peter Brötzmann faz parte daqueles artistas embebidos em aura de radicalidade, que tantos sentimentos extremos, de paixão e repulsa, despertam. Não fosse o fato de a free music permanecer deveras marginal, o nome do saxofonista alemão rodaria por aí de boca em boca, como símbolo de certa fineza underground, ao lado de figuras como Beckett, Glauber Rocha, Godard, Pollock, Stockhausen, artistas de extremos que muitos amam festejar ou rechaçar como forma de se sentirem incluídos em algum tipo de saber revelador. No caso de Brötzmann, tal postura alimenta clichês como o de achar que seu trabalho é movido apenas por camadas torrenciais de notas sopradas com toda a força dos pulmões, como se o músico estivesse há quatro décadas repetindo a fórmula de “Machine Gun” – apenas mais uma forma redutora de ver seu trabalho. Bastaria uma parada em seus discos solos ou em capítulos da década de 1970, por exemplo, para compreender que sua sonoridade lida com campos expressivos muito mais amplos. Brötzmann não é um natural melodista, como era Albert Ayler ou o é David S. Ware. Tampouco sua escritura traz linhas swingantes – daí a heresia de Brötzmann ter se declarado herdeiro de ícones do jazz, como Sonny Rollins, Coleman Hawkins e Benny Carter. “Penso que, de uma forma muito pessoal, estou a seguir uma tradição de saxofonistas, de tenores. Tentei retirar elementos da sua maneira de tocar para a minha música. (...) Apenas adapto esses elementos à minha maneira, mas acho que sou um músico de jazz, sim.”  (Ps: Stanley Crouch e Wynton Marsalis quase que entraram com um processo indenizatório milionário contra Brötzmann  por injúria e difamação...).

O alemão nascido na pequena cidade de Remscheid, em meio à Segunda Guerra, no dia 6 de março de 1941, dedicou toda a vida à arte. Seu foco principal na juventude eram as artes plásticas, o que o levou a se graduar na 'Art Academy of Wuppertal'. Antes de enveredar de vez pela música, se envolveu com o pessoal do grupo Fluxus, tornando-se próximo do influente artista sul-coreano Nam June Paik (1932-2006). O Brötzmann pintor e gravurista mantém-se vivo até hoje, tendo ele declarado que gostaria de repartir seu tempo em 50% música e 50% artes plásticas. Mas o que o tornaria famoso e daria seu sustento seria de fato apenas a música. Brotada sem compromisso em meio à ansiedade juvenil, a música para Brötzmann veio inicialmente na forma de clarinete, instrumento que aprendeu a manusear antes dos saxes e com o qual tocava em bandas de dixieland e swing de sua cidade.

Ainda em 62, ele encontraria um de seus parceiros próximos, o baixista Peter Kowald (1944-2002), com quem passaria a tocar regularmente, levando aos poucos a modernidade das artes plásticas que o rodeava para a música que descobria. Um dos mais antigos registros dessa fase inicial é o de um trio com Jürgen Hannemann (baixo) e Dietrich Rauschtenberger (bateria), em uma apresentação em Wuppertal em 64. Ao lado de Kowald, há um registro de novembro de 65 e outro de maio de 66, este lançado em single como “Mayday”. Essas gravações mais antigas vieram a público apenas em tempos recentes. Oficialmente, a estreia de Brötzmann em disco data de junho/setembro de 1967, quando o álbum “For Adolphe Sax” saiu pelo selo independente (“BRÖ”) que o instrumentista criou na época. Quando “For Adolphe Sax” apareceu, causou frisson no meio europeu, com seu som cru, áspero e quente. No período, Brötzmann ampliava a passos largos seu mergulho no mundo dos sons, tendo, fora seu trio, se associado à pioneira free-orchestra de Alexander von Schlippenbach, a ‘Globe Unity Orchestra’, além de aproveitar as oportunidades que surgiam para tocar com músicos americanos que passavam pela Alemanha, como Carla Bley e Don Cherry. Foi Cherry que apelidou o saxofonista de Machine Gun, em referência a seu furioso toque – alcunha esta que se tornaria o título de seu próximo e seminal trabalho.
Sintomaticamente, o clássico “Machine Gun” foi registrado em maio de 68. Nascida da explosiva combinação de um octeto formado por jovens músicos excepcionais (além de Brötz e Kowald, Evan Parker, Bennink, van Hove, Breuker, Niebergall e Johansson), Machine Gun poderia ter sido a trilha sonora perfeita de maio de 68... No ano seguinte, Brötz apareceu com outro petardo, “Niples”, no qual explorava novas possibilidades da free music, contando com um sexteto e um novo parceiro de peso, Derek Bailey. Apesar da repercussão forte que esses primeiros álbuns tiveram, Brötz deu certa guinada nos anos 1970, explorando de forma mais contundente –porém, menos incendiária– a free improvisation. Marco nesse ponto é o disco conhecido como “0130”, de fevereiro de 73, em que ele é acompanhado por Fred Van Hove e Han Bennink. Com os três músicos se revezando em diversos instrumentos – Brötz, que se concentrava no sax tenor em seus primeiros discos, aparece aqui munido dos saxes alto, tenor, baixo e barítono, além de clarinete– em peças curtas (algumas com apenas cerca de 2 minutos), fragmentadas, com espaços de detalhes timbrísticos e certa ironia paródica, como se os músicos quisessem dizer “não somos apenas fúria incontida!”... Tal esquema marcaria muitos trabalhos daquela década, como sua estreia solística de 76 (“Solo”) e, especialmente, os duos com Han Bennink.


Não raro, é possível se deparar com pessoas ligeiramente decepcionadas com os duos de Brötzmann e Bennink. Dada a imagem que ambos ostentam, muita gente busca seus discos movidos pela expectativa de encontrar um registro herdeiro de “Interstellar Space” ou “Duo Exchange”. Mas o que Brötz e Bennink mostram em seus encontros são sessões de improvisação livre nas quais a energy music não se apresenta necessariamente como foco condutor. Os dois músicos participaram juntos de mais de 20 álbuns, sendo pelo menos uma meia dúzia formada apenas por duos. Iniciada em 1968, nas gravações de “Machine Gun”, a parceria se estendeu continuamente até 1980, quando seguiram seus rumos. Apenas em 2004 voltariam a formar uma dupla, se encontrando pontualmente nos anos seguintes. Um dos projetos mais interessantes do duo é “Schwarzwaldfahrt”, registrado em maio de 1977 ao ar livre, na Floresta Negra. O instrumentista alemão conta que sempre passava pela região quando ia embora para casa, ficando intrigado com a gama de sons naturais que formavam o ambiente. Conversando com Bennink sobre seu fascínio em relação aquele espaço, veio a idéia: porque não carregavam seus instrumentos para o meio da Floresta Negra para uma sessão de improvisação livre? Interagindo com os instrumentos, estavam lá pedras, troncos, água, pássaros, insetos. O resultado pode não ser uma obra prima sonora, mas “Schwarzwaldfahrt” se tornou um capítulo-chave na associação entre os dois músicos.
 
 
O diálogo entre Brötzmann e Bennink naquela fase heróica teve seu último suspiro em abril de 1980, na cidade japonesa de Atsugi. No dia 8, no palco do Rodo Center, os instrumentistas subiram armados de um vasto arsenal: Brötz tocou naquela noite saxes tenor e barítono, Eb clarinete e piano; Bennink foi de bateria, C-melody sax, C-clarinete, trombone, piano, bamboo xylophone, conchas, pedras e violino. A noitada foi registrada e se tornou um raro LP, editado na época e nunca mais resgatado: "Atsugi Concert". O aparato levado ao palco foi utilizado para a criação de algumas extensas peças (são apenas 5 no total) de improvisação livre, nas quais divagações contemplativas (como as faixas 2 e 3) formam pontos destacados no conjunto. Momentos de maior peso e acidez, como mostra a faixa 1, na qual a bateria se destaca como nunca, também estiveram presentes. Essencial? Provavelmente não. Mas sem dúvida um documento de relevo na trajetória diversificada e extensíssima de Peter Brötzmann.



"PETER BRÖTZMANN Trio"
*Quando: Julho. Dias 27 e 28, às 21h; dia 29, às 19h
*Onde: Sesc Belezinho (SP)
*Quanto: R$ 24 (inteira)