Novas faces, novos discos, música sempre renovada


"Jazz, música morta desde sempre, vai contra meus princípios.” (Álvaro Pereira Júnior)


Festivais e mídia rotineiramente tratam o jazz (e isso querendo exaltá-lo!) de uma forma que acaba por alinhá-lo a uma visão simplista e redutora, como se o gênero se resumisse a um punhado de ícones intocáveis e algumas de suas cópias contemporâneas, todos muito limpinhos, classudos e formados no Berklee College. Vendo o termo jazz sob um prisma realmente amplo, da mesma forma que o fizeram Richard Cook e Brian Morton no clássico “The Penguin Guide to Jazz”, é inevitável se deparar com uma gama de artistas criadores de vastos campos e propostas sonoros, espectro tão abrangente que fica complicado lidar com preconceitos ingênuos frutos de desinformação. Nosso crítico-roqueiro-indie-alternativo-old school talvez imagine que sob o gênero jazz habitem apenas Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, algum álbum de Miles ou Coltrane, umas big bands, um som ambiente em bar esfumaçado e um Wynton Marsalis para fechar a conta... É bem provável que não faça ideia do que foi o free jazz sessentista e os desdobramentos que tal processo de radicalização teve na música posterior – fundamental inclusive para muita gente do rock. Que o digam Kim Gordon e Thurston Moore, Wayne Kramer, Iggy Pop, Lou Reed, J. Spaceman, Mike Patton, Luc Ex, Patti Smith, Dave Lombardo, Mick Harris – alguns dos que formaram parcerias com gente do meio ou se revelaram admiradores/conhecedores desse universo sonoro. Enfim, cada um ouve o que deseja, mas, definitivamente, o jazz não é música morta desde sempre.
Nem desde nunca.

(Mary Halvorson Trio, com Ches Smith e John Hébert. 2010)

Novos artistas com propostas variadas não param de surgir. Apenas dando uma pincelada em lançamentos recentes, pode-se encontrar muita gente, no máximo na casa dos 30, apresentando música viva em diversas frentes, indo desde um polo jazzístico mais strictu sensu a até uma abertura de exploração embrenhada na improvisação livre – esse território indomável desmembrado das experiências mais radicais do jazz. Sons para ouvidos atentos, música fresca e contemporânea.


Davy Mooney é uma das jovens figuras de New Orleans. Radicado em NY desde 2009, o guitarrista estudou com destacados nomes de sua terra (Hank Mackie e Steve Masakowski) e carrega no currículo apresentações com Chris Potter, Nicholas Payton, Michael e Randy Brecker, além de ter feito parte do “Fellowship” de Brian Blade. A “Critical Jazz” localizou sua sonoridade como estando em algum lugar “entre Kenny Burrell e Pat Martino”. O guitarrista (que também se aventura nos vocais) estrutura seu trabalho dentro do campo da canção jazzística, sem arestas ruidosas ou arroubos improvisativos. Mooney acaba de lançar o delicado “Perrier Street”, álbum de marcada fatura melódica, no qual se destacam as participações da quente e profunda voz de Johnaye Kendrick e do pulso vital do baterista Brian Blade – conhecido do público brasileiro notadamente pela sua participação no quarteto de Wayne Shorter.
“Perrier Street” mostra as sofisticadas harmonias de Mooney e acentua mais sua faceta de “songwriter” do que a de solista ou virtuose. Mooney tem programada em sua agenda uma passagem por SP em julho, tendo já marcadas apresentações em pequenos locais, como Jazz nos Fundos e O’Malleys.

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Ainda pensando em guitarra, mas em um outro extremo: lá está a americana Mary Halvorson, que acaba de soltar “Bending Bridges”. Comandando um quinteto, que conta também com seus parceiros de trio (vídeo acima) – o  baixista John Hébert e o baterista Ches Smith (que esteve em SP com Tim Berne e com o Secret Chiefs 3) –, mais sax e trompete, a guitarrista mostra sua música improvisada que a tem colocado entre os grandes nomes do instrumento atualmente. Parem e ouçam a sensacional faixa “Deformed Weight oh Hands” do novo disco para entender o que a moça anda fazendo. Intensamente belas as pessagens em que ela utiliza de forma mais aguda os pedais.

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O baterista alemão Joe Hertenstein, entrevistado pelo Free Form, Free Jazz em março, chamou a atenção da crítica no ano passado com seu álbum “Polylemma”. Agora ele retorna com este “Future Drone”, trio com Achim Tang (baixo) e Jon Irabagon (sax tenor), que acaba de ser lançado pelo selo berlinense “Jazzwerkstatt”. Em uma via distinta da apresentada em “Polylemma”, o baterista exibe sua pegada mais voraz, em um processo de força que sintoniza o disco com a energy music do free pioneiro, mas sem ignorar possibilidades mais contemplativas – vide a faixa “Panic Balad”.




A nova safra inglesa também está bem representada. O pianista/organista Alexander Hawkins é um dos que têm fortalecido a atual cena britânica. Tendo encontros com nomes fortes da área, como Joe McPhee, o baixista John Edwards e os bateristas Mark Sanders (que já vimos no CCSP) e Steve Noble, Hawkins apresenta o mais recente trabalho de seu sexteto neste “All There, Ever Out”. Se a improvisação livre sem medo de arritmias é um dos pilares dos trabalhos de Hawkins, também não pode ser ignorada a relevância de certa arquitetura composicional nessas suas criações para conjunto. Hawkins esteve há não muito no Brasil, mas em outro contexto: tocando piano no grupo de Mulatu Astatke.    





Mergulhando ainda mais na seara da free improvisation, paramos na França, terra da violoncelista Soizic Lebrat. A instrumentista lançou há pouco “Off the Record”, em versão digital gratuita, potente disco de duos com o saxofonista Heddy Boubaker (este já demonstrou uma faísca rock com seu power-free-trio ‘Phat’) . A música livre e intensa de Soizic Lebra, nascida em Lyon em 1976, já havia se encontrado com os saxes de Boubaker em “Accumulation d'acariâtres acariens”, de 2009. Música abstrata de ingestão indicada apenas aos ouvintes de ouvidos livres de amarras.  



E para não dizerem que não falamos de Brasil, vem de Porto Alegre, de onde boas novidades têm brotado, o trio formado por Diego Dias (tenor e clarinete), Renato Rieger (baixo elétrico) e Marcelo Armani (bateria). “Sísmico” é um dos discos que o trio soltou neste ano, pelo selo independente 1Take. Formado por apenas duas longas faixas, o álbum ilustra a seriedade com que a improvisação livre vem sendo difundida e gestada no país. Música intensa, sem rodeios. Boa oportunidade para se interar do que anda ocorrendo em outras praças além SP.