Início dos anos 1970. A cena free jazzística japonesa estava
em ebulição, com uma linha de frente de fazer inveja a gerações futuras: Kaoru
Abe, Sabu Toyozumi, Yosuke Yamashita, Masayuki Takayanagi, Motoharu Yoshizawa, Mototeru
Takagi, Akira Sakata, Takeo Moriyama, Kenji Mori... Parceiro de muitos desses, Masahiko
Togashi (1940-2007) era um dos instrumentistas mais requisitados nas baquetas. E
isso não mudaria nem mesmo após uma armadilha do traiçoeiro destino quase silenciar sua arte...
Togashi é daqueles artistas que se dedicou a vida toda a um rumo certeiro.
Filho de músico, começou a estudar violino ainda pequeno. Aos catorze
anos, já havia focado seu interesse na bateria e, dada sua fluidez e controle
do instrumento, logo entrou para a banda de swing de seu pai. O prodígio
Togashi iria, aos dezessete anos, se profissionalizar, conquistando espaço no
quarteto do saxofonista Sadao Watanabe –que se tornaria mais à frente famoso no
ocidente com seu som permeado de referências bossa-novísticas. A próxima
parada, em 61, foi o grupo da popular pianista de jazz Toshiko Akiyoshi. No
decorrer da década, o baterista gravaria diversas sessões com Watanabe,
tornando-se conhecido no meio. Mas faltava algo naquela música que Togashi
praticava, algo que apenas a descoberta do universo do free jazz traria a ele.
Em junho de 63, ao lado de outras jovens figuras
fundamentais do período–como o guitarrista Masayuki Takayanagi, o pianista Yosuke
Yamashita e o trompetista Terumasa Hino–, Togashi protagonizou as lendárias
sessões “Ginparis”, marco da inquietude responsável pela eclosão do jazz moderno
no país. Junto com o pessoal da “Ginparis”, Togashi ajudou a moldar o free
nipônico ainda nos anos 60, absorvendo o que de mais vanguardista vinha dos EUA
e da Europa e adicionando toques próprios. Somente em maio de 1969 Togashi editaria
seu álbum de estreia, “We Now Create”. Acompanhado de um quarteto, o
percussionista apresentava em “We Now Create” um dos primeiros exemplares
originais do free jazz japonês, energy music com espaçadas improvisações e sabor
particular, sem emular as referências americana e europeia. No entanto, passados apenas alguns
meses desde a gravação pioneira, o percussionista foi dramaticamente surpreendido:
um acidente grave, uma lesão na coluna, a sentença aterradora: Togashi ficaria confinado
a uma cadeira de rodas pelo resto da vida. A princípio, parecia inevitável: era
o fim da linha para a carreira de baterista. Meses se passaram, repouso, recuperação
e busca de um novo foco: e Togashi resolve voltar à música, na mesma posição que ocupava antes. Para tanto, adaptou todo o aparato percussivo, de forma a
poder manejá-lo apenas com os braços, adentrando uma nova etapa de seu percurso
artístico, que se estenderia até meados dos anos 2000, pouco antes de morrer, depois
de haver participado de mais de 120 álbuns e tocado com nomes de fôlego da free
music mundial (Steve Lacy –seu mais habitual parceiro no ocidente–, Don Cherry,
Charlie Haden, Albert Mangelsdorff, Peter Kowald, Dave Holland, Kent Carter, Paul
Bley, Gary Peacock, todos dividiram créditos e palcos com o percussionista
japonês).
Quem escutar o Togashi de antes e de depois do acidente notará
uma mudança de densidade em sua música, claro. Mas o fato dele não ter se
caracterizado, nem em sua juventude, como um baterista muscular, ajudou a dar
uma coesão a seu percurso, sem uma ruptura brutal de rumo –aliás, ruptura de
fato ocorreu em sua trajetória, mas antes: basta ouvir seus primeiros trabalhos
com Sadao Watanabe e a música que passou a produzir a partir do fim dos 60’s. Muito
da criação de Togashi está fora de catálogo, o que priva os ouvintes de navegarem
por obras belíssimas como os dois volumes da “Session in Paris” (79); sua “Story
of Wind Behind Left” (75), editado na época pela ‘major’ Columbia nipônica e
depois esquecida; seu dueto (um dos) com Steve Lacy, “Eternal Duo” (81); ou “Bura
Bura” (86), free bop saboroso com Cherry e Holland.
Dos anos 1980, vem outro exemplar raro e intenso: Flame Up.
Captado em maio de 81, “Flame Up” traz um trio completado por Kazutoki Umezu (sax) e
Yoriyuki Harada (piano), exibindo momentos de intensidade free jazzística que nem
sempre está presente no trabalho (por vezes, mais contemplativo) de Togashi. O
disco foi gravado após Umezu e Harada passarem uma temporada nos EUA, em meio à
vibrante cena loft setentista –de testemunho daquele momento, há o incrível Seikatsu Kojyo Iinkai, gravado por Umezu e Harada junto a William Parker, Ahmed
Abdullah e Rashid Shinan em 75. Dos quatro temas do álbum de 81, se destacam
por sua aguda energia “Doing in the Fire” e a faixa-título “Flame Up” –na qual
Togashi tem maior espaço para exibir sua arte percussiva. Reparem como a última
faixa é concluída com um fade out, o que demonstra que a interpretação não se
encerrou por ali. Como o disco nunca teve uma versão em CD, que pudesse exibir
o tema em sua totalidade (sabe-se lá por quanto tempo a improvisação se
estendeu!), acaba-se por ficar com a sensação de certo vazio ao final da
audição, sabe-se que algo foi extirpado... Apesar de terem tocado juntos em
outros contextos, esse trio não se tornou um grupo regular, deixando como testemunho somente este álbum, demonstração de força e vigor do
free nipônico.
"Flame Up"
*Masahiko
Togashi: drums, percussion
*Kazutoki
Umezu: alto sax, bass clarinet, flute
*Yoriyuki
Harada: piano
A1. Flame
Up (15:24)
B1. Spring
Song (5:12)
B2. Twilight (3:02)
B3. Doing
in the Fire (9:59)
Recorded at King Records Studio #2, Tokyo. May 26-28, 1981.