Formato clássico do universo jazzístico, o trio costuma ser
automaticamente associado ao encontro de piano-baixo-bateria. É claro que tal
formação resume apenas uma das várias possibilidades resultantes da união de
três instrumentistas. Um exemplo grandioso: o trio sem baixo, que gestou nas
últimas décadas encontros vitais. Um dos pioneiros em testar as possibilidades
de um trio composto por sax-piano-bateria foi Lester Young (1909-1959), que na
década de 1940 fez preciosos registros acompanhado apenas pelo piano de Nat
'King' Cole (1919-1965) e as baquetas de Buddy Rich (1917-1987). O trio sax-piano-bateria
teve também seus destaques na seara free, a começar nos anos 1970 pelo conjunto
de Alexander von Schlippenbach com Evan Parker e Paul Lovens, e desaguando no
grupo do pianista japonês Yusuke Yamashita com Akira Sakata (sax) e Takeo
Moriyama (bateria).
Foi apoiado nesse diálogo sax-piano-bateria que François
Carrier gestou seus últimos rebentos. Saxofonista canadense, Carrier completou
em 2011 seus 50 anos de idade, sendo dono de uma discografia que supera os
vinte álbuns e parcerias com figuras como Mat Maneri, Paul Bley, Gary Peacock,
Uri Caine, Jason Moran, Dewey Redman e Tomasz Stanko. Sendo um dos free
improvisers mais líricos em atividade, o saxofonista gosta de lidar com
extensas peças de divagante e áspera suavidade. Foi com um trio de sax-piano-bateria
que Carrier fez uma pequena turnê pela Rússia em dezembro de 2010, que gerou o
material que deu vida ao conjunto de três álbuns que ele lançou há pouco. A seu
lado na empreitada estão o pianista Alexey Lapin e o baterista Michel Lambert.
Os três discos –"All Out", "Inner Spire" e "In Motion"–, independentes mas unidos entre si, saíram pelos selos Leo Records (dois deles)
e FMR. Nesses três registros é possível adentrar e mesmo se sentir
relativamente íntimo do universo de Carrier. São quase três horas de música
totalmente improvisada, que pede para ser degustada seguidamente, como se de um
único concerto se tratasse. Todas as faixas foram extraídas de apresentações
realizadas em dezembro de 2010 em São Petersburgo e Moscou. Em meio a essa
música que acolhe sem amansar, que conforta sem rumar por caminhos melódicos ou
rítmicos previsíveis, é possível sentir o toque das gélidas noites russas em
que foi concebida, como se fosse sensorialmente perceptível o vapor congelante
que emana dos telhados das casas que estampam a capa de All Out. Improvisação
livre absorvendo, moldando-se a seu entorno.
“Intense and inspiring! These are the two words I use to describe my brief passage in Russia”,
escreveu Carrier no encarte de Inner Spire. Sem ser incendiária, a
música da “trilogia russa” de Carrier exala grande vibração divagatória, sendo contemplativamente
enérgica, com os picos mais robustos tocados pelo trio sendo logo diluídos, sem
a necessidade de aquecerem os ouvidos com fisgadas brutais ou ataques
entorpecentes. Round Trip, que está no disco 'Inner Spire' (e pode ser conferida
no vídeo abaixo, com imagens dos concertos no espaço DOM, em Moscou), é uma boa
mostra/entrada à tessitura fluida e limpa desenvolvida pelos instrumentistas.
Importante notar: trata-se de música coletiva, de improvisação conjunta, que
não nasceu destinada a solos e brilhos individuais. Carrier e Lambert são
parceiros há muito tempo e isso fica explícito na cumplicidade que ambos exibem
nesses documentos; Lapin, russo nascido em 1966, responsável por organizar a
excursão a seu país, se mostra bem integradao aos outros instrumentistas,
apesar de ficar em alguns momentos mais ao fundo. Para quem ainda não foi
apresentado à música de Carrier, essa trilogia russa é uma valiosa oportunidade.
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Para conhecer + François
Carrier:myspace.com/francoiscarrier
francoiscarrier.com