Kaoru Abe: a arte da criação solitária

Há quatro décadas, o saxofonista japonês Kaoru Abe (1949-1978) iniciava sua incursão no mundo solo, que marcaria toda sua (brevíssima) trajetória artística. Mais da metade dos discos que assinou, entre 70 e 78, são compostos por gravações solistas. Abe não começou sua jornada como músico solitário, dividia os trabalhos com outros instrumentistas, como revela sua discografia. Seu surgimento para o mundo é demarcado pela condução de um feroz trio (“Trio Shinjuku”, de março de 70), de sabor marcadamente ayleriano; na sequência, viriam as icônicas experiências em duo com o guitarrista Masayuki Takayanagi (“Mass Projection”, “Kaitaiteki Kokan”), de jun/jul de 70, que marcam em muito o começo do ‘free-noise’; ao lado de Hiroshi Ymammazaki, nasceria a forte sessão de janeiro de 71: “Jazz Bed”; ainda em outubro daquele ano, outra parceria com outro percussionista, Yasukazu Sato (“Acacia no Ame Ga Yamu Toki”).

É do final de 1971 que vem os primeiros registros do saxofonista sozinho com seu instrumento. Em dezembro daquele ano, nasceram as criações que seriam editadas como “Kurai Nichiyoubi”. E, a partir daí, uma serie de gravações solitárias, brotadas praticamente em todos os seus próximos curtos anos de vida: “Matanohi no Yumemonogatari” e “Mokuyoubi no yoru” (72); “Partitas” (73); “Mort a Credit” (75); “Studio Sessions” (76); a serie “Live at Gaya” (77/78), com 10 volumes; e “Last Date” (78). O sax alto, seu instrumento favorito, é quem domina as sessões. Mas há oportunidade para vermos Abe fuçando outros instrumentos que gostava de executar: o sopranino, o clarinete-baixo, a harmônica, e até demonstrações (mais raras) à guitarra e ao piano. É interessante observar que dos poucos vídeos que restaram do saxofonista em ação, ele está invariavelmente só. Essa vontade de tocar sem parceiros em muito pode ser explicada pela própria trajetória do músico, que não é filiado a nenhum mestre ou escola; Abe fez seu percurso em muito sem ninguém, praticando seu sax solitário na beira da rodovia Tokyo-Yokohama , antes de começar a se apresentar profissionalmente em 1970. Existe até uma história lendária que conta que certa vez Abe foi avistado sozinho na neve, às margens de um lago congelado, tocando uma música incompreensível e insandecida: como as horas passavam e nada daquilo se encerrar, a vizinhança tratou de chamar a polícia para averiguar a situação, antes que o jovem de atitude suspeita acabasse por se envolver em algum 'delito' mais sério...

As gravações originárias de 1972 estão entre as mais representativas da poética de Kaoru. Críticos costumam apontar que sua música “esfriou” nos últimos anos de vida, adentrando um pólo mais contemplativo e marcado por espaços silenciosos e vazios. Ou seja: é desse início de vida artística que brotaram seus momentos mais valiosos.

Além dos dois álbuns de 72 citados, há um terceiro capítulo registrado em abril daquele ano: "Kagayakeru Nintai (Brightened Patiance)". Somente ao alto, o músico japonês desfia três longas improvisações, que exibem os traços marcantes de sua arte: rotas de aceleradíssimo ataque em meio a passadas de dedilhado mais pontual. Apesar do explosivo perfil do álbum como um todo, as faixas se sucedem em um crescendo, com a primeira improvisação se desnudando de forma mais escalonada; a segunda, em fúria desregrada em seus 16 minutos; e a última parte oscilando as variações –notem o caldeirão fervente que se tornam os últimos três minutos. Kaoru Abe nunca se vinculou a rótulos ou esferas, nada de flertar com jazz ou rock; sua música era algo espontâneo, livre e puramente improvisada, nascida como que um grito dolorido, esquartejante, indicador de uma busca sem fim, de um pólo inatingível, mas ansiosamente tateado. Se não fosse o envolvimento com a heroína, Kaoru Abe teria sobrevivido? Teria escapado de ser sufocado e devorado por sua implacável criação? 

"Kagayakeru Nintai" (Brightened Patiance)
*Kaoru Abe: alto saxophone (solo)

Recorded on April 11, 1972 at Pulcinella, Shibuya/ Tokyo.