No mundo dos orixás

Em uma fase primeira de seu percurso musical, Ivo Perelman buscou captar no universo sonoro brasileiro um ponto de partida, diálogo e inspiração. O mundo das cantigas de roda (‘Escravos de Jó’, ‘Ciranda, Cirandinha’) marcou seu álbum de estréia, “Ivo” (1989). Depois vieram “Soccer Land” (94), com temas tradicionais (‘Lampião de Gás’) e uma visita a Luiz Gonzaga (‘Forró de Cabo a Rabo’); seguido por “Man of the Forest” (94), no qual o universo de Villa-Lobos é o centro; e “Tapega Songs” (95), inspirado na música dos índios Tapeba.
E entre esses discos, o encontro com o universo afro-religioso: Children of Ibeji (91/92), uma visita ao mundo dos orixás do candomblé, a mais voraz experiência da etapa inicial de sua obra.

Durante grande parte da década de 90, me dediquei a buscar uma síntese entre o jazz de corrente free e as exuberantes formas rítmicas brasileiras. (...) quinze anos mais tarde sinto que, embora parte de uma necessária etapa evolutiva, a pesquisa não encontrou seu objetivo final”, avalia Perelman.

Children of Ibeji adentra com liberdade o cancioneiro do candomblé. Religiosidade e espiritualidade não estão em jogo: a busca do saxofonista é sonora, intensidade rítmica e sopro voraz em resultado de alta expressividade. Desconheço se o músico fez pesquisa de campo em terreiros ou se baseou seu mergulho no som dos orixás por meio de gravações. Perelman já vivia nos EUA na época e foi lá que o álbum nasceu. Flora Purim faz vocais em algumas faixas, acompanhada de um aparato percussivo liderado por Guilherme Franco e Manolo Badrena. Uma seleção free também marca presença: nada menos que Andrew Cyrille, Fred Hopkins, Paul Bley e Don Pullen. O álbum nasceu em três sessões distintas, com os músicos se revezando (não há indicação de quem toca em cada faixa). Dentre os temas resgatados no universo do candomblé, há duas faixas perdidas: ‘O Morro’ e uma inexplicável ‘Tom’s Diner’, sucesso pop de Suzanne Vega que nada tem a ver com a concepção de “Children of Ibeji” (brincadeira de fim de sessão de estúdio levada a sério?).

A voz de Flora conduz ‘Mina do Santê’ e ‘Pedrinha’ (Little rocks of Aruanda) e promove os momentos de maior contato com a ritualística afro-religiosa –compará-las com as versões de Joãosinho da Goméia (1914-1971) é uma experiência interessantíssima.‘Oxalá’ (Chant for Oshala) é outra releitura que vale a pena ser degustada lado a lado com a versão afro-original (aqui apresentada por José Ribeiro).

Há também explorações bem distantes, como “Chant for Logum” (Logum Edé), que se torna uma lamuriosa balada, com destacado piano. Todas as peças são chamadas no álbum de ‘Chant’ seguida pelo nome do orixá. Em discos que registram a música do candomblé e da umbanda o mais comum é encontrarmos simplesmente o nome do orixá titulando a peça (mas há também registros que trazem ‘Canto ou Toque de/para tal orixá’). Gravações de temas realizados por representantes de diferentes terreiros, com o nome do mesmo orixá, podem soar diferentes, especialmente para os leigos. Todavia, mesmo por trás de resultados aparentemente distintos, haverá traços precisos: cada orixá tem seu ‘ponto’, sua marca, caracterizados por ritmo e cântico particulares. Um conhecedor desse universo sonoro-ritualístico pode decodificar sem problemas que ‘ponto’ de que orixá está sendo executado em dado momento. Não sei se os músicos envolvidos em Children of Ibeji, especialmente os percussionistas, discutiram esse tipo de detalhe –em certo aspecto, fundamental– na hora de realizarem suas interpretações free jazzísticas. Mas o resultado é muito enérgico –apesar disso, não deve interessar aos devotos do candomblé e da umbanda, pois não tem conotação ou função ritualística, não foi gestado com a mesma finalidade e o mesmo espírito das criações de Joãosinho da Goméia e de José Ribeiro.

Children of Ibeji

1. MINA DO SANTÊ (14:38)
2. O Morro (9:29)
3. LOGUM EDÉ (Chant For Logum) (9:20)
4. Oh! Que Noite Tao Bonita (5:24)
5. OXUM (Chant For Oshum) (8:46)
6. OXALÁ (Chant For Oshala) (3:55)
7. PEDRINHA (Little Rocks of Aruanda) (8:34)
8. Tom's Diner (3:26)
9. Chant For Ibeji (3:33)
10. Cantar (4:15)


*Ivo Perelman: tenor
*Flora Purim: vocal (1,7)
*Fred Hopkins: bass
*Paul Bley, Don Pullen: piano
*Andrew Cyrille: drums
*Guilherme Franco, Manolo Badrena, Mor Thiam, Frank Colon: percussion
*Brandon Ross: guitar

Recorded in New York at Kampo, Electric Lady, Green Point on May 22, July 9 & 10, 1991. All songs mixed at The Carriage House, January 1992.

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"Joãosinho da Gomea: rei do candomblé"




1.Bombogira
2. Pemba
3. Oxossi
4. Caiaia
5. Ogum
6. Xangô
7. Pavão
8. Vou’ me embora pro sertão
9. MINA DO SANTÊ'
10. PEDRINHA
11. LOGUM EDÉ (Saudação a Logunede)
12. OXUM

*Joãosinho da Goméia: vocal, arranjos
*Coro: anônino
*Percussão: anônimo

Release date: 1960s/Brasil
 
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"No Reino de Angola"




1. Exú ''Vila Mavangu - Xô Apavenan''
2. Ogum
3. Oxóassi ''Olorobaraguge Landaguage''
4. Omulu
5. Ossanhe
6. OXUM
7. Yamanjá
8. Yansã
9. Nanã ''Nanã que Ja Oei - Alodê''
10. Xangô
11. Boiadeiro Navizala
12. OXALÁ

*José Ribeiro: vocal, arranjos
*Coro: anônino
*Percussão: anônimo

Release date: 1972/Brasil