Roi Maciaz: "Todo o tempo se improvisa na vida"

Roi Maciaz é uma das figuras mais ativas e interessantes do free argentino. Natural de San Luís, que fica a cerca de 820 km de Buenos Aires, Maciaz começou com o piano para depois descobrir e adotar o sax. Às vezes, arrisca algo na guitarra. Também pinta. Como um músico que vive no underground (e, ainda por cima, distante da capital de seu país), vai fazendo o que pode para manter sua arte viva. Conversei com o sempre simpático Maciaz sobre sua música, sua jornada e a cena argentina...

   

FF - Vamos começar pelos seus primeiros encontros com a música. Como se deu sua formação? Passou por alguma escola de música? Aprendeu primeiro a tocar sax ou piano?
"Frequentei um conservatório durante alguns anos, o Conservatório Chopin, e aos 15 ou 16 anos comecei a montar bandas de rock, essas coisas. Também passei uns 2 ou 3 anos no Belas Artes, sempre focado no piano. Embora eu confesse que não seja um apaixonado pelo piano... mas minha irmã o estudava, meu pai comprou um e, bom... foi o instrumento do qual sempre estive próximo. Até hoje não sei a que instrumento me sinto mais ligado, tenho a cabeça cheia de sons e imagens, quase a ponto de me enlouquecer. Posso dizer que aprendi muito escutando várias coisas de cada vez e nunca tive um estilo definido. Fui baixista de bandas de rock durante muito tempo e a aproximação com o sax data de uns 5 ou 6 anos... enquanto pintava, escutava muita música feita por saxofonistas, por exemplo Hank Mobley, John Gilmore, Dexter Gordon, Sonny Rollins, Don Byas… Mas repito: aprendi muito escutando de tudo e de vários estilos. De Iron Maiden, Kiss, a Eduardo Rovira, de Grand Funk a Charlie Parker, de Jean Michel Jarré e Serú Girán a Peter Brötzmann ou The Bad Plus, de Beethoven e Edgar Varese a Ornette Coleman ou Luigi Nono, Giacinto Scelsi, passando por Facundo Cabral, Sex Pistols, trilhas sonoras, Leonardo Fabio, Arthur Doyle, Emerson, Lake & Palmer, Frank Zappa… Alguma vez disseram que aqueles que são péssimos alunos nos conservatórios são um pouco mais apaixonados que os cerebrais, os prodígios, não nos entendem então buscamos por meio dos sons os guias, os conselheiros, mentores que em geral estão distantes ou mortos. Um grande “guía espiritual” para mim é Thelonious Monk, também Derek Bailey, Sun Ra e Hal Russell, pensar neles me ajuda a seguir em frente."

FF - Como se deu sua aproximação com o free jazz e a improvisação livre?
"Descubrindo, certa vez, um disco do Don Cherry, “Smphony for Improvisers”, esse foi o grande convite à sensação do som. Depois comecei a escutar coisas de Ornette Coleman, de Albert Ayler, de John Coltrane, Alan Silva, John Zorn… Na improvisação livre tudo é poderoso, porque se trata de compreender a entregar-se. Vibração e sentido. Me aproximei da música experimental, do noise e da free improvisation porque não posso ficar sem ter a mente aberta, nem que me subjuguem, e essas músicas (por sorte) ainda são controladas pelos músicos, pelos artistas. Meus mentores no sax são Frank Lowe, Albert Ayler, Peter Brötzmann, Arthur Doyle, Kaoru Abe, Paul Flaherty, Hal Russell… e no piano Don Pullen, Sun Ra, Burton Greene, Helmut Lachenmann, Mono Villegas… às vezes me arrisco com a guitarra, mas diria que me aborrece muito os guitarristas, eu a encaro como um pincel carregado de cores inesperadas, então para que aconteça algo com a guitarra tem que acontecer algo especial comigo, que nem eu sei o que é. Quando toco sou um ‘gusano’ [minhoca, larva] ou uma águia. Não há meio termo na improvisação livre... Mas também sei que ambas as coisas são válidas."

FF - Quais são as principais dificuldades para quem tenta fazer esse tipo de som na Argentina? Há um público interessado em free no país?
"Penso que na Argentina e em muitos países há dificuldades naturais em relação a essa música, por ser um tipo de música em estado bastante puro é difícil de alcançar a massa, os ouvidos acostumados a sons e ritmos impostos pelos meios de comunicação. Apesar de haver lugares mais receptivos, como a Europa. Mas aqui na Argentina também existem empecilhos alheios ao artístico, como a politicagem e o não saber ser artista independente, muitos posam de músicos independentes, mas acabam é se encostando em entidades públicas para tentarem poder exibir o que fazem. Custa ser livre, a liberdade provoca apreensão, provoca um vazio, um vazio profundo... o artista realmente livre é aquele que sem medo constrói sua arte no meio do nada. Também acontece de os músicos das grandes cidades subestimarem os que vêm de Estados pequenos, como é o meu caso, mas isso não me preocupa. Entre a politicagem e a arte o que eleger? Se é um artista, sabe a resposta!"

FF - Você grava apenas em selos pequenos, independentes. O quanto é difícil divulgar seu trabalho? Com quantos títulos já conta sua discografia?
"Esse tipo de som sempre será difícil de ser divulgado, mesmo que se trabalhe com selos grandes ou renomados. Os selos pequenos dão maiores garantias de liberdade e orçamento pequeno... mas a liberdade não tem preço, não é? Quando escrevo, pinto ou faço música não penso, se penso, creio que o que faço vale apenas dinheiro e a obra se impregna de “humanidade” e isso é o que menos quero que aconteça. Eu não comercializo minhas obras. Prefiro dar minha música de presente, se alguém quiser comprá-la tudo bem, mas quero que minha criação seja observada e escutada como um ato de transubstanciação. Quando toco não sei o que toco, mas o que toco me faz acreditar que é meu ser (e não me importa se há público ou apenas meu cachorro), me sinto genialmente feliz. O dinheiro serve para persegui-lo, não serve para fazer arte. Eu faço minha arte para entregar-me filosoficamente. É como, depois de percorrer muitos quilômetros de rumos sonoros, chegar a uma espécie de Monte Athos e saber que deve ficar ali. Quero dizer: sinto como algo espiritual e um risco mental amplamente fantástico. Tenho uns 16 títulos [lançados]."   

FF - Você tem vários projetos, com diferentes pegadas. Fale um pouco sobre eles.
"Escrevo de vez em quando e a pintura é uma grande fraqueza minha... e compor música serial e coisas noise e drone também estão entre minhas paixões... mas estou completamente focado na free improvisation, a verdade é que necessito de reação espontânea diante do instrumento e como filosofia de vida musical não quero tanta genuflexão à teoria musical, mas cada vez mais concentrar-me no envolvimento com as vibrações dos sons. Há uma frase de Paul Bley que às vezes me convence e que diz: “Compor é para covardes”, é um pouco extrema, porém, o que acontece é que todo o tempo se improvisa na vida, enquanto tentamos programar os pensamentos e as atitudes... então... o que é melhor que ser dono absoluto desse pequeno momento em que nos sentimos livres de qualquer amarra ou instituição e, além disso, saber que encontrei um mundo em que estou bastante acomodado, no qual o som não é usado para sugerir nada, ou seja, é a consistência contra a desarmonia. Parece que, no final das contas, o que mais me interessa nesse assunto é que amo estar envolvido pelo som e não tanto pelo que costumam chamar de ‘música’, porque ‘música’ é um rótulo que engana o tempo todo, já o som é a pureza. Por isso digo que não sou um músico de free jazz ou de free improvisation, sou um músico distópico e ascético. Meu novo projeto se chama ASCESIS FULL e é uma mistura de free jazz, rock, drone e os músicos que participam são Feco González na bateria, Mauricio Mariojouls no baixo, talvez um guitarrista e eu nos sopros. Espero poder tocá-lo [o projeto] logo."

FF - Você vive em San Luís. Tem contato com músicos de outras Províncias? Há mais pessoas envolvidas com o free Argentina afora?
"San Luís é um lugar pequeno e tranqüilo. Aqui toco uma ou duas vezes por mês, coisa que muitos músicos do gênero free em cidades maiores como Buenos Aires, Córdoba ou Rosário não conseguem fazer. E não o fazem porque estão é mais preocupados com as condições que são oferecidas para tocar. Quero dizer que se o local não está de acordo com o que pretendem fazer, se há sistema de som, se a acústica é boa, se não há piano acústico, não podem tocar e coisas assim, além de misturarem tudo com politicagens... eu não me preocupo muito com essas coisas, quero tocar, quero improvisar, sou um pouco intransigente, mas não posso perder oportunidades para tocar e improvisar... é muito complicado arranjar locais [pata tocar] para desperdiçá-los, sabe?  Com alguns músicos tenho tido divergências por questões como essas, eles não querem tocar e acabam me deixando sozinho para fazer o concerto, é muito triste que músicos talentosos sejam histéricos... não gosto nem um pouco quando esse gênero se mostra como algo ‘esnobe’ e veste a camisa de ‘somente para cultos’. Porque sabemos que o instrumento mais difícil de afinar é o ego... Mas acredito que sim, que começa a haver um incremento no número de músicos desse gênero em vários lugares.  Todavia, para que isso cresça mais, tem de deixar de lado a politicagem e a máscara de intelectualóide que faz com que tudo se torne mais elitista do que na verdade supostamente é. Aqui há muitos bons músicos com talento e garra, como Pablo Ledesma, Omar Grandoso, Zelmar Garín, Adrian Fanello, Jorge Hernáez, Augusto Urbini, Carlos Mastrángelo, Gustavo Nasutti, Diego Arbit, Lucio Capece, Alan Plachta, Hernan Vives, o guitarrista Alcides Larrosa. Penso que há muitos músicos em várias províncias."


FF - Sei que tocou algumas vezes com o britânico George Haslam. Tem contato com outros músicos estrangeiros? Qual é a importância desse tipo de intercâmbio?
"Com George Haslam, faz uns seis anos que nos conhecemos, George é um músico avant-garde, não é propriamente ‘free’ (lembro da cara dele quando mostrei um vídeo de Kaoru Abe!!!), mas temos realizado coisas bacanas, é um grande cara e um bom saxofonista. Tive também a sorte de tocar com o italiano Enzo Rocco, um guitarrista muito interessante e uma pessoa agradabilíssima e divertida, provavelmente gravaremos algo juntos. Nesse momento há um projeto de realizar algum concerto com David Haney, um excelente pianista norte-americano. Tenho contato e gostaria de tocar com Günter Heinze, trombonista e flautista alemão. Esses são encontros que, é claro, enriquecem muito, são intercâmbios culturais e que adicionam credibilidade à improvisação."


FF - Já veio ao Brasil? Já foi convidado a tocar aqui?
"Não conheço o Brasil, mas adoraria ter contato com músicos daí. Gostaria de participar de algum evento ou algo assim. Seria ótimo se isso se materializasse... Gosto muito da música do sul do Brasil. Me deixaria muito feliz uma aproximação, misturar idéias, ampliar a improvisação, explorar sensações."


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**Um pouco mais de Roi Maciaz: 
http://www.myspace.com/roimaciazfreeoid
http://roimaciaz-soundgalerie.blogspot.com


**Vídeo: Roi Maciaz e Feco González em maio de 2011.