Um olhar para a Rússia (e cercanias) – VI

Como muitos de seus companheiros de geração, o saxofonista Anatoly Vapirov (nascido em 1947, em Berdiansk, Ucrânia) foi, primeiramente, estudante de música clássica. No ano de 1971 se graduou como clarinetista no Conservatório de Leningrado; em 77, recebeu o título de Mestre naquele que se tornaria seu instrumento principal, o saxofone. No mesmo conservatório atuou como professor de jazz e música clássica, entre 76 e 81. Paralelamente à vida acadêmica, Vapirov se envolveu com diversos projetos underground de jazz e rock, num casamento cada vez mais intenso com o avant-garde.

Amigo próximo de figuras como Vladimir Volkov, Sergey Kuryokhin e Igor Bril, o saxofonista fundou o “Vapirov Jazz Quartet” em 76, período em que gravou seus dois primeiros trabalhos pelo selo oficial soviético (único no país na época), o Melodia. No Ocidente, seu primeiro disco a ser lançado foi “Invocations”, com composições de 81-83, pela Leo Records. No começo dos anos 1980, envolveu-se em conflitos abertos com as autoridades, combatendo e denunciando a repressão e a censura. Resultado: acabou processado e encarcerado. Conta-se que o músico formou um grupo de jazz na prisão, que teria vencido um concurso musical do sistema carcerário soviético. Após recuperar sua liberdade, na segunda metade da década de 80, decidiu imigrar para a Bulgária, onde vive até hoje.

Relevante parte da história de Vapirov acabaria por ficar associada à Bulgária. Foi por lá que ajudou a criar o “Varna Summer Internacional Jazz Festival”, tornando-se seu diretor artístico entre 1992 e 2005. Dono de uma discografia que ultrapassa as sete dezenas de álbuns, o saxofonista já dividiu gigs, palcos e registros com Barry Guy, John Surman, Paul Rutherford, Louis Sclavis, Mal Waldron, Tony Levin e outros tantos.

Mysteria é o segundo trabalho da discografia de Vapirov, tendo sido gravado em 1977. Em meio a um sopro free, uma guitarra fusion, até funkeada em certos momentos, e um suspeito ‘coro’ que remete a certo espiritualismo eslavo, o instrumentista edificou essa extensa e curiosa peça, dividida em duas partes (uma de cada lado do vinil). Posso estar enganado, mas parece que o disco jamais recebeu nova edição. O lado A é o melhor, com o sax centralizando o desenvolvimento da peça. A guitarra onipresente nos primeiros minutos do lado B acaba por tirar um pouco da força sonora da segunda parte, que melhora com a entrada mais marcada do sax soprano. Sem dúvida, não se trata do melhor de Vapirov, mas é um registro obscuro e interessante daqueles tempos em que ainda teimava sobreviver o Império Soviético.



1. Mysteria I (21:35)
2. Mysteria II (20:02)



*Anatoly Vapirov: tenor, soprano
*Boris Lebedinsky: guitar
*Dunayevsky: bass
*Daniel Martin: drums
 

Recording date: 1977.