Um olhar para a Rússia (e cercanias) – III

Esse foi um dos nomes fortes da cena russa: o pianista Sergey Kuryokhin.
Após anos longos de estudos de piano clássico e canto coral, desde a infância, Kuryokhin (1954-1996) desembarcou em 1971 em Leningrado, onde se integrou ao ‘Leningrad Conservatory’. Ainda nessa década, se deparou com aquele que representaria um ponto de viragem em sua trajetória: o saxofonista Vladimir Chekasin (do ‘Ganelin Trio’), que acabou por lhe apresentar um novo mundo sonoro, passando a ser seu ‘tutor’ na seara free. Outro amigo próximo nesses tempos primeiros foi o também saxofonista Anatoly Vapirov, com quem gravou o expressivo “Forgotten Ritual” (78-83). O pianista morreria de câncer em 1996, aos 42 anos de idade. Em sua homenagem, foi criado o “Sergey Kuryokhin International Festival (SKIF)”, um evento anual de arte contemporânea, com música, teatro, vídeo e outras manifestações.

A estreia de Kuryokhin como líder se deu em 1981, com o álbum solo 'The Ways of Freedom'. Em seus próximos 15 anos de vida, gravaria cerca de 40 discos. O caminho do pianista foi bastante aberto, atuando em contextos diversos, do free jazz ao clássico contemporâneo, passando pelo rock e pela improvisação livre. Envolvido com cinema, teatro, com gente do jazz, do rock e do free improv, o músico teve uma rápida ascensão nos anos 1980, logo tornando-se um dos ícones do underground russo. Turnês pelo mundo começaram em meados da década de 80 e o levaram a se envolver com gente como Henry Kaiser, Andrew Voigt, Otomo Yoshihide, Keshavan Maslak, David Moss e Gino Robair. Além de seu piano de origem, com o qual deixou diferentes registros solo, Kuryokhin se aventurava por outros teclados e gravou uma serie de trilhas para filmes.

Em 1984, ele deu início a um de seus projetos mais conhecidos, a Pop-Mechanika Orchestra, grupo que trazia uma ampla trupe em meio a referências pós-modernas, com peso free jazzístico movido por sopros intensos, influências do rock, salpicada de folk e pastiches do pop internacional. Em sintonia com o humor peculiar da japonesa Shibusashirazu Orchestra, a Pop-Mechanika levava aos palcos, além dos músicos, artistas outros, multimídia e performers, em um espetáculo sensorial de diversas amplitudes. Era variável o número de artistas que participavam de cada apresentação, indo de concentrados trios a dezenas de pessoas no palco. Essa gente toda vinha da cena free (como o saxofonista Sergey Letov), do jazz (Igor Butman), de grupos de rock e folclore russos e escandinavos, de orquestras sinfônicas, teatro, circo e até artistas de rua.   

Talvez um pouco do sabor desse projeto pertença aos anos 1980. Mas o grupo também deixou apresentações de grande impacto, como este “Iblivyi Opossum”, captado na França em 91. Os sopros são o ponto de ebulição do disco. Sobre o teclado de Kuryokhin, que dita um ritmo repetitivo e frenético, os sopros atacam em entradas ríspidas e enérgicas, com solos não menos cortantes. A guitarra fica com a parte datada, ruim de digerir (pior ainda quando remete a temas pop da época), mas não chega a apagar a força e o impacto do restante do conjunto. Sem imagens da apresentação, fica difícil ter a real noção do que foi o espetáculo. Mas dá para sentir a vibração da música ali gestada.

 
1. Iblivyi Opossum (62:23)


*Sergey Kuriokhin: keyboards
*Sergey Letov: bass clarinet, tenor sax
*Mikhail Kostyushkin: saxes
*Aleksandr Titov: bass
*Aleksandr Lyapin: guitar
*Andrey Romanov: acoustic guitar
*Boris Shaveynikov: drums
*Aleksandr Kondrashkin - percussion
(and others artists/performers)

Recorded live in Nantes, France 22 October 1991.