Em apenas seis meses, teremos tido a oportunidade de ter apreciado alguns veteranos que nunca ou pouco haviam pisado por aqui. Depois de Yussef Lateef (fevereiro) e Ornette Coleman (novembro), chegou a vez de Archie Shepp. Um dos mais conhecidos nomes da época heróica do free jazz, Shepp nasceu na Flórida em 1937. Aos 22 anos desembarcou em Nova York, logo associando-se a Cecil Taylor e aparecendo em álbuns como “Air” (1960). As próximas empreitadas seriam ao lado de Bill Dixon, John Tchicai e Don Cherry (‘New York Contemporary 5’). A amizade com John Coltrane fez com que Shepp fosse o primeiro de seus ‘protegidos’ a lançar pelo selo Impulse. Em gratidão à força dada por Coltrane, Shepp deu o nome de “Four for Trane” à sua primeira obra editada pelo prestigiado selo. O disco, captado em agosto de 64, trazia Roswell Rudd, John Tchicai, Reggie Workman e Charles Moffett tocando quatro temas de Trane, dentre os quais a balada Naima, em versões mais livres que as originais.
Dono de um sax de corpo pouco robusto, devedor do melhor de Ben Webster, Shepp sempre se mostrou, em meio à liberdade inerente à sua jornada, ser mais controlado e menos sonoramente explosivo que figuras como Albert Ayler ou Frank Wright -o que dá maior coerência a seu percurso. Em 1965, Shepp gravou algumas sessões para a Impulse!, com destaque para os álbuns “On This Night” e “Fire Music”, que exibem a variedade de interesses do músico para compor seu painel avant-garde. Da participação da soprano Christine Spencer à faixa ‘Macolm, Macolm, Semper Macolm’ (que nasceu a partir de um poema que escreveu em homenagem ao líder negro que havia sido assassinado há pouco), de versões à brasileira “Garota de Ipanema” a clássicos de Duke Ellington (“Prelude To a Kiss”, “Sentimental Mood”), Shepp apresenta nesses trabalhos sua inquieta palheta de influências. Audacioso, mas tradicionalista, resumiu um crítico.
A música de Shepp se construiu em meio a uma simbiose entre o novo e o antigo. De raízes blues explícitas, também deu atenção às tradições africanas ancentrais. Seu diálogo com a África-mãe gerou o disco “The Magic of Ju-Ju”, de abril de 67. Para compor o álbum, Shepp uniu a seu tenor um grupo de cinco percussionistas –Beaver Harris, Norman Connors, Ed Blackwell, Frank Charles e Dennis Charles –, criando uma camada percussiva de elevada temperatura, por cima da qual destila ferozmente o sopro. A experiência seria aprofundada dois anos depois, quando o saxofonista se apresentou no “Pan African Festival”, na Argélia, acompanhado de percussionistas locais. O disco resultante do encontro (“Live at the Pan African Festival”) foi editado pelo francês BYG/Actuel e ficou como um registro essencial do encontro entre o free e a “Mãe África”.
Tendo o sax tenor como instrumento de base, Shepp passeia por sax soprano e piano, além de se arriscar nos vocais. No auge do movimento pelos direitos civis dos negros nos anos 60, Shepp estreitou relações com Amiri Baraka e se tornou uma das vozes mais combativas e agressivas. Além de músico, desenvolveu também trabalhos como dramaturgo e poeta, e, após a década de 1970, se firmou como professor universitário respeitado. A abertura sonora de Shepp o levou a rumos variados em sua jornada, tendo aproveitado, além do blues e dos spirituals, traços do funk; também gravaria standards e baladas e chegaria a subir no palco ao lado de nomes de referências variadas, indo de Chuck D (Public Enemy) a Chet Baker. É desse amálgama, embebido tanto da modernidade quanto da tradição, que emana a música do saxofonista, espalhada por mais de 50 álbuns.
O som de Shepp se acalmou nas últimas décadas. Talvez a fúria tenha se aplacado na alma de muitos de sua geração (vide Pharoah Sanders e Marion Brown, por exemplo), quer seja por sensação de dever cumprido, quer seja por desalento diante de um mundo que não deu (n)o que ansiavam. Não que eles tenham comercializado suas músicas; jamais viraram estrelas. Mas acabaram por se aproximar mais estritamente de bases jazzísticas que antes demoliram sem piedade. Quem viu o show de Shepp em junho de 2001 em SP, no Chivas Jazz Festival, sabe do que estou falando. E o saxofonista desembarca (desembarcou: chegou na cidade na quarta-feira) com quase o mesmo grupo que o acompanhou 10 anos atrás em SP: Tom McClung (piano), Steve McCraven (bateria) e Darryl Hall (baixo; este, novidade).
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Pouco depois da morte de John Coltrane em julho de 1967, Archie Shepp excursionou pela Europa com um incrível quinteto. Com dois trombones (Roswell Rudd e Grachan Moncur III), baixo e bateria, Shepp estava em elevada produção criativa, atravessando uma fase em que gestou alguns de seus grandes trabalhos. A presença de Jimmy Garrison, fiel escudeiro de Trane que pouco tocou com Shepp, eleva a força simbólica do álbum. Captado ao vivo e se resumindo a duas extensas improvisações, “One for Trane” (editado outras vezes como “Life at the Donaueschingen Music Festival”) recebeu diferentes versões em vinil por pequenos selos europeus, mas permanece fora de catálogo. Música intensa e inspirada, grande representante dos tempos áureos do free.
A. One for Trane, Part 1 (23:51)
B. One for Trane, Part 2 (21:39)
*Archie Shepp: tenor
*Jimmy Garrison: bass
*Roswell Rudd, Grachan Moncur III: trombone
*Beaver Harris: drums
OneTr
Recorded live at the "Donaueschingen Musiktage", October 21st, 1967.
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Essa outra gravação é um curioso encontro entre o saxofonista e o grupo “Family of Percussion”, surgido em 1977 pelas mãos do percussionista suíço Peter Giger. O encontro de Shepp (que aqui toca tenor, soprano e flauta) e os músicos da ‘Family’ ocorreu em 1980. Não se trata de percussão em alta afro-voltagem, como o registrado em “The Magic of Ju-Ju”, mas tem seus momentos de maior vigor. Atenção à faixa 2 (Street Song), que traz os momentos mais fortes de Shepp ao tenor.
1. Here Comes The Family (7:37)
2. Street Song (7:02)
3. Euterpe’s Favorit (6:43)
4. Andopetotri (7:23)
5. For Ti Roro (12:44)
*Archie Shepp: tenor, soprano, flute, voice
*Peter Giger, Doug Hammond, Tom Nicholas, Trilok Gurtu: percussion, voice
Recorded October 13/14, 1980, at Biton Studios.
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“ARCHIE SHEPP”
Quando: 28 (sábado) e 29 (domingo); às 21h e 19h
Onde: Sesc Pompeia
Quanto: R$ 32 (inteira)