Um olhar para a Rússia (e cercanias) – I

Pela distância geográfica, pelo idioma incompreensível, também pelo fato de não haver grupos significativos de imigrantes seus no Brasil, a Rússia poderia ser para nós apenas mais um país exótico e pouco palpável. Porém, ao menos no que tange seu fazer artístico, o país está mais próximo e presente do que, curiosamente, muitos de nossos vizinhos latino-americanos ou de nossos companheiros africanos de mundo lusófono.

Falar em Arte russa no Brasil é pensar automaticamente em clássicos da literatura e da música erudita. Logo também vem à mente pintores e cineastas, vanguardistas de várias vertentes, lingüistas e fotógrafos.
No campo literário, novas traduções de clássicos russos têm desembarcado em nossas prateleiras de forma constante nos últimos anos. Dostoiévski, Tolstói e Tchekhov já contam com boa parte de sua bibliografia vertidas diretamente do original. O cinema pode não chegar em nossas telas rotineiramente, mas é possível encontrar no país em DVD (quase) toda a filmografia do gênio Andrei Tarkóvski, além de clássicos de Dziga Vertov, Eisenstein e Pudovkin. Quem se interessa por cinema também já teve variadas oportunidades para apreciar o mais importante cineasta russo contemporâneo, Aleksandr Sokúrov. Nas artes plásticas, não é raro nos depararmos com exposições que contemplem Kandinsky, Maliévitch e (especialmente) outros vanguardistas. Neste momento (apenas até amanhã!) é possível visitar a exposição do fotógrafo Aleksandr Ródtchenko (1891-1956) na Pinacoteca. A música russa, na seara dita erudita, sempre está presente nas salas de concertos, de Tchaikovsky a Shostakovich, de Prokofiev a Gubaidulina. Apenas neste mês de abril, a Osesp já tocou peças de Borodin, Rimsky-Korsakov, Alexander Glazunov, Tchaikovsky e do estoniano Arvo Pärt.

Mas o assunto aqui não é a arte russa em sua múltipla abrangência. O que se pretende é falar um pouco sobre o jazz/free jazz/free improv produzido ontem e hoje na Rússia (e suas cercanias: entenda-se: os países que formavam a extinta URSS). Apesar da profusão de nomes realmente interessantes vindos daquela região, eles acabam por não ser costumeiramente lembrados/visitados/escutados.      

O jazz esteve presente em solo russo desde a década de 1920, quando por lá ainda se firmava o império soviético. Um concerto realizado em Moscou em 1 de outubro de 1922, conduzido pela “The First Jazz Band of the Republic”, marca o início do diálogo com a música negra americana. Seria em 1926 que um grupo americano desembarcaria pela primeira vez para se apresentar no país: eram os “Jazz Kings”, do baterista Benny Payton, que trazia como solista Sidney Bechet. Em 1928 saiu o primeiro disco de jazz gravado na Rússia, sob o comando do pianista Alexander Tsfasman. Mas essa relação estava condenada a não dar certo desde cedo. Ainda em 1928, o respeitadíssimo escritor Máximo Gorki (1868-1936) publicou um artigo no jornal Pravda no qual atacava o jazz e sua depravação. E, com o advento da Segunda Guerra (1939-1945), as coisas piorariam: é nesse ponto que a bipolaridade Capitalismo/Comunismo – EUA/URSS se acentua: como o jazz, a música americana por excelência, símbolo propagandístico do Departamento de Estado dos EUA, poderia continuar frutificando na URSS? Sob a mão dura de Stalin (1878-1953) e a rigidez da linha estética do Realismo Socialista, seria no mínimo um contra-senso o jazz ser aceito e se desenvolver livremente.

Seria apenas no final da década de 1950 que a cena jazzística na URSS recomeçaria a ganhar algum relevo. O ensaísta e historiador Frederick Starr aponta o período de 65-67 como marco de importância no re-estabelecimento da música jazzística no país. Com a maior liberdade que chegava aos poucos, novos músicos passavam a criar tendo gradualmente contato com as vanguardas sonoras que circulavam por trás da cortina de ferro. É no final dessa década que o baterista Vladimir Tarasov (que no futuro gravaria com Anthony Braxton e Andrew Cyrille) reúne a primeira formação de um trio que depois daria origem, nos anos 70, ao cultuado “Ganelin Trio”; é nesses tempos que o free jazz e a improvisação livre gerariam alguns de seus mais fortes representantes oriundos de solo soviético, como o saxofonista Anatoly Vapirov e o pianista Sergey Kuryokhin. Em 1978, ocorreria na cidade de Novosibirsk, localizada na Sibéria, o evento “New Jazz Symposium”, que se tornaria um marco na solidificação da música nova no país. Com os anos, uma série de outros músicos se destacariam e dariam corpo ao free improv soviético, formado por uma lista mais abrangente do que costumamos imaginar, na qual destacam-se nomes que depois “conquistariam” os ouvidos no ocidente, como os saxofonistas Sergey Letov e Petras Vysnauskas, o baixista Vladimir Volkov, o trompetista Slava Gayvoronsky, o celista Vlad Makarov, Alexander Alexandrov, Yury Parfenov, Ilia Belorukov etc etc.

(Sergey Letov, sax; Vlad Makarov, celo; e Ryoji Hojito; 2008)

Fora da URSS, seria o esforço de Leo Feigin, a partir dos anos 1980, que traria a música livre soviética ao público que até então a ignorava. Por meio de seu selo, o Leo Records, lançou uma serie de álbuns para promover e apresentar o som que vinha daquelas bandas. A sua mais famosa descoberta é o Ganelin Trio, escolhido para abrir a serie Um olhar para a Rússia (e cercanias), que começa agora:

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O Ganelin Trio se tornou o mais conhecido e cultuado grupo free jazzístico vindo da URSS. O trio iniciou suas atividades na primeira metade dos anos 1970, sob o nome “G-T-Ch Trio”, em referência a seus três membros: o pianista Vyacheslav Ganelin (nascido em Moscou, em 1944), o baterista Vladimir Tarasov e o saxofonista Vladimir Chekasin. Em 1976, após tocarem no Warsaw Jazz Jamboree, começaram a gravar seus primeiros álbuns, como “Con Anima” (76) e “Concerto Grosso” (78). Tendo caído nas graças de Leo Feigin, o grupo foi o mais difundido pelo seu selo na Europa e EUA, que (re-)lançou quase toda sua obra durante os anos 80.

A música do Ganelin Trio lida com uma abertura a ritmos e sonoridades diversas: à forte base jazzística do pianista, adicionam elementos do folclore russo, regam com free jazz e deixam tudo rolar pelas vias da improvisação livre. Dessa visada, que em uma perspectiva afro nos acostumamos a apreciar no 'Art Ensemble of Chicago', os três músicos partem de seus instrumentos de origem para uma ampla gama de outros instrumentos de sopro e percussão. O colorido vasto resultante brota de longas sessões de improvisação ora densas, ora contemplativas, que levam os ouvintes de um ponto de inquietude e surpresa a outro, sequencialmente. O trabalho do Ganelin Trio fica bem exposto neste Poi Segue, lançado em 1982. Em apenas duas extensas faixas, os músicos lidam com um variado número de instrumentos e sonoridades, bem característicos de seu processo.

O trio excursionou pela primeira vez nos EUA em 1986, um pouco antes de formalmente se dissolver. No final da década de 80, Tarasov e Chekasin seguiam tocando juntos, enquanto o pianista utilizava o nome “Ganelin Trio” (o que faz até hoje) para tocar com novos parceiros. O trio original voltou a se reunir na década de 2000, mas apenas para apresentações especiais.     








Side A. Poi Segue I (17:16)

Side B. Poi Segue II (19:26)

Poi 

*Vyacheslav Ganelin: piano, guitar, flute, basset horn
*Vladimir Chekasin: sax, trombone, flute, percussion, violin
*Vladimir Tarasov: drums, percussion

Release of 1982, Melodia label (URSS).