O mais velho dos 'Shorter'

Muitos não o conhecem. Outros se referem a ele apenas como ‘o irmão mais velho de Wayne Shorter’. Morreu esquecido, ignorado. Alan Shorter (1932-1987) era seu nome e esteve, munido de seu trompete, na ebulição do free jazz nos anos 60.

Alan ‘Al’ Shorter nasceu em New Jersey, cerca de quinze meses antes de seu famoso irmão saxofonista. Começou testando o sax, passando depois para o trompete e o flugelhorn. Entrado os anos 50, tocou em bandas de bebop e teve uma rápida passagem pela Howard University, que largou antes de concluir os estudos, pois achava o ambiente muito conservador –depois freqüentou a New York University. Ainda nessa década, tocou em uma big band junto com seu irmão e o trombonista Grachan Moncur III. São escassas as informações sobre o trompetista; mesmo os livros especializados tratam dele de forma sempre muito ligeira. Arredio, discreto, taciturno, o músico –que tinha pintada, desde jovem, a inscrição “Doc Strange” na tampa do estojo de seu trompete– quase não deixou fotos ou declarações.

Durante o período que vai de 1964 ao começo da década de 1970, Alan apareceu como sideman em discos de diferentes nomes da cena: Archie Shepp (‘Four for Trane’, ‘Pitchin Can’, ‘Coral Rock’), Marion Brown (‘MB Quartet’, Juba-Lee’), Alan Silva (‘Celestrial Communication Orchestra’), François Tusques (‘Intercommunal Music’). Nessa fase, seu irmão Wayne estava no auge, acompanhando Miles Davis e gravando prestigiados álbuns para a Blue Note. Mas os irmãos Shorter escolheram caminhos sonoros distintos, o que não colaborou para que alimentassem parcerias: Alan gravou apenas uma faixa com Wayne, ‘Mephistopheles’, que saiu no disco ‘The All Seeing Eye’, de 65.

Como líder, Alan gravou somente duas sessões: “Orgasm”, de 68, e “Tes Esat”, de 70. Em “Orgasm”, foi acompanhado por nomes conhecidos do free: Charlie Haden, Gato Barbieri e os irmãos bateristas Rashied e Muhammad Ali. Depois desse álbum, fez como muitos de seus pares e seguiu para a Europa, onde viveu por cinco anos, estabelecendo-se na incandescente Paris. Após retornar aos EUA, em meados dos 70s, Alan sumiu progressivamente. No período, passou uma temporada como artista residente no Bennington College, a convite de Bill Dixon. De sua última década de vida, não restaram informações.

Em 1991, o jornalista Frédéric Goaty entrevistava Wayne e perguntou sobre o irmão dele, do qual não tinha notícias há tempos. O saxofonista respondeu: “Ele morreu em Los Angeles, em 1987, de problemas cardíacos. Eu o cremei e levei suas cinzas para um templo japonês no Monte Fujiyama.” É provável que na época de sua morte poucos souberam, talvez nada tenha sido noticiado. Seus dois álbuns estavam fora de catálogo há muito tempo e o trompetista, afastado da cena musical. Quando morreu, Alan adentrava outra etapa de sua vida: estudava Filosofia e ia se casar com Ruth Ann Hancock, prima do pianista Herbie Hancock.

Há quem diga que os dois irmãos não se davam bem. Em algumas entrevistas de Wayne, me deparei com pequenos comentários sobre Alan. É interessante que o pouco que Wayne fala de seu irmão se refere basicamente ao período em que eram jovens, sem muitos detalhes, acentuando que se tratava de um cara estranho, sinalizando uma diminuição de contato entre eles na vida adulta, quando se tornaram músicos profissionais:

Quando éramos jovens, tocávamos nas bandas de Jackie Bland e Nat Phipps. Depois formamos nosso conjunto, ‘The Group’. Nos influenciávamos muito no começo, ambos tocávamos sax. Alan tocava tenor [às vezes, ele fala em alto] na adolescência. Uma vez ele emprestou o instrumento para um conhecido, que disse que depois o devolveria. Mas o cara desapareceu... (...) E ele começou a tocar flugelhorn.

Ele alimentava idéias sobre romper com o domínio das fórmulas comerciais na música. (...) Estava sempre em conflito, com os professores na escola, com os executivos das gravadoras, nos estúdios. Não queria nada para guiá-lo. (...) Até no exército, ficou apenas seis meses e pediu baixa.

Alan criou seu próprio mundo. Ele sempre carregava um monte de papéis, sempre escrevendo (...). Depois que morreu, encontrei uma peça escrita por Alan na garage dele chamada ‘The Innkeeper’.”

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‘Al’ gravou Tes Esat quando estava na França, em 1970. Para o disco, convocou apenas não-americanos: o cultuado sul-africano Johnny Dyani assumiu o baixo; no sax, o subvalorizado  britânico Gary Windo, mais conhecido por atuar ao lado de Carla Bley e com o ‘Brotherhood of Breath’ –Windo está incendiário na primeira faixa. Tes Esat é bem diferente do anterior “Orgasm”. Suas faixas mais deslizam que se desenvolvem, amparadas em frágeis repetições temáticas e ataques. O trompete de Alan, marcado por entradas e saídas bruscas, seco, sem solos extensos ou toques alongados pode ser bem sentido nesse trabalho. Dyani é uma peça-chave, muito à vontade, tocando baixo, piano e flauta. A primeira longa faixa resume o tom do álbum: após deixar o primeiro minuto chegar de forma sutil, com apenas baixo e percussão, os dois sopros atacam e abrem os 10 minutos mais nervosos do disco. Depois, variações mais soltas, com o piano intervindo e os sopros surgindo e desaparecendo.



1.Disposition (27:02)
2.Beast of Bash (2:54)
3.One Million Squared (10:48)


*Alan ‘Al’ Shorter: trumpet, flugelhorn
*Gary Windo: sax tenor
*Johnny Dyani: bass, piano, flute, bells
*Rene Augustus: drums, bells


Recorded at Studio Decca, Paris, Mar 11th 1970.