Quem deu uma olhada na edição da Folha de S.Paulo de hoje se deparou com um texto que fiz abordando a vinda de Ken Vandermark ao país (Ilustrada, p. E3). Utilizei algumas falas de Vandermark para a matéria, que vieram de uma entrevista que fiz com ele nessa última segunda-feira. O músico se revelou uma figura extremamente gentil e atenciosa, se dispondo a responder minhas indagações mesmo estando apurado com compromissos e a proximidade de embarcar para o Brasil. Como o espaço do jornal é restrito, trago para os leitores do Free Form, Free Jazz uma versão ampliada da conversa. Aproveitem.
FF - Você desembarca no Brasil para se apresentar em duas cidades, São Paulo e Porto Alegre, com um trio novo. O que podemos esperar desse grupo?
"É a primeira vez que trabalharei com esse trio, formado por Mark Sanders e Luc Ex. Aliás, é a primeira vez na vida que tocarei com Luc Ex (com Mark Sanders eu venho trabalhando nos últimos anos, em um outro trio, que conta com o baixista Barry Guy). Para ser sincero, não sei que rumo a música que faremos tomará –toda a música será completamente improvisada, todos os três músicos envolvidos nisso têm uma ampla gama de interesses e habilidades musicais; a música pode ser muito abstrata em uns momentos e marcadamente rítmica e melódica em outros, é difícil de saber e eu gosto da idéia de que as portas estarão abertas."
FF - Sua obra tem sido construída por meio da atuação em diversificados projetos que lidam com variadas formas e estilos. Isso já gerou críticas no sentido de que faltaria foco à sua obra, de que você abriria demais suas perspectivas?
"Certa parte do público e da crítica tem dito isso, que me espalho muito, desde que comecei a gravar de forma mais intensa em meados da década de 1990. Sim, eu toco muitos, muitos projetos a cada ano; e há muitos álbuns documentando essas atividades. Mas essa é a forma que gosto de trabalhar. É uma sensação orgânica para mim, estar envolvido em diversificadas estéticas criativas. Eu aprecio diferentes tipos de música para apenas trabalhar com um deles, há muitas sonoridades interessantes mundo afora, não dá para somente lidar com um mesmo projeto o ano todo."
FF - O que pensa de termos como ‘avant-garde’, que acabam sendo utilizados muitas vezes para rotular seu trabalho?
"Gosto do termo ‘avant-garde’ quando aplicado às Artes. Acho que sua história no século XX –na pintura, literatura, música, filmes, dança, fotografia– é realmente fantástica. Ter minha música associada com essa parte da História me deixa muito orgulhoso."
FF - Qual o status do free jazz/free impro nos dias atuais? Os jovens se interessam por essas expressões musicais?
"Se estamos falando sobre o Jazz Contemporâneo (que engloba uma enorme gama de diferentes tipos de música), eu penso que o underground está bem e vivo, esbanjando criatividade. Não acho que a cena mainstream contemporânea queira ser interessante, eles estão mais interessados em manter um estilo do que serem criativos. Para mim, a História do Jazz está relacionada à criatividade, a indivíduos não-conformistas se chocando contra o que veio antes deles, indo adiante. Wynton Marsalis é o primeiro jazzista famoso que quer levar a música para trás; antes dele, os artistas essenciais foram sempre indivíduos preocupados em realizar algo novo ou desconhecido até então.
"Há muitos músicos contemporâneos trabalhando com Jazz e Improvised Music que têm feito coisas realmente incríveis e, baseado em minhas próprias experiências ao redor do mundo, posso dizer que tem havido um crescente público para a ‘new music(s)’; e muitos desses ouvintes são jovens."
FF - Quando falamos em free music, quem não conhece o gênero pode acabar por associá-lo a desordem, caos, dissonância. Nos tempos heróicos da década de 1960, esse ‘free’ também esteve associado a questões espirituais e políticas. O que podemos entender por ‘free music’ hoje?
"Música é feita com som e forma, independente de qualquer coisa. Por isso, eu entendo ‘Free Music’ ou ‘Free Jazz’ ou ‘Free Improvised Music’ como temos problemáticos. Nenhuma música é verdadeiramente livre de restrições, de orientações estéticas. Se a música não é convencional, ela pode ser difícil para certos ouvintes, que não têm roteiros ou padrões para ajudá-los a compreender o que os músicos estão fazendo. Mas está tudo lá. É como olhar uma fotografia e ficar indignado porquê não é igual a uma pintura. Diferentes tipos de música demandam diferentes vocabulários e gramáticas, assim como ocorre com diferentes tipos de línguas.
"Penso que o trabalho dos artistas não-convencionais é um ato político, que oferece às pessoas outras possibilidades de como ver e ouvir o mundo –ir contra o status quo: isso é um ato político para mim. Posso dizer o mesmo em referência ao lado espiritual."
FF - O sax tenor foi seu primeiro instrumento? Qual sua relação com os grandes do saxofonistas do passado? Se sente pertencendo a alguma linhagem?
"Fui extremamente afortunado em crescer em uma casa onde havia música o tempo todo (normalmente jazz) e fui levado a centenas de concertos de jazz em Boston enquanto eu estava crescendo; minha formação foi construída sob a história do jazz, vendo concertos e escutando gravações. Também tive muita sorte em poder tocar com artistas veteranos e aprender diretamente com eles –pessoas como Fred Anderson, Paul Lyton, Joe McPhee e Peter Brötzmann tiveram um profundo impacto na minha forma de pensar e tocar.
"Meu primeiro instrumento foi o trompete, mas lá pelos 16 anos percebi que eu era péssimo. Então fui para o sax tenor, adicionando depois o clarinete-baixo em meados dos anos 80, e o clarinete Bb quando cheguei a Chicago; o sax barítono surgiu tempos depois."
FF - E a free music brasileira? Tem algum contato com realizações de brasileiros?
"Eu conheço um pouco do trabalho do Márcio Mattos, do Ivo Perelman também. Mas estou mesmo é familiarizado com a música popular do Brasil, bossa nova, tropicália etc. Sou grande fã de Jorge Ben Jor e Caetano Veloso."
FF - Quando tem uma folga dos palcos e estúdios, tem ânimo para escutar música? O que toca em sua vitrola?
"Eu amo música, de todos os tipos. Minha coleção de discos é bastante extensa. Metade do que tenho é jazz, mas também há centenas e centenas de discos de funk, reggae, rock, new music, sons da África, da América do Sul... O som está ligado o tempo todo em casa, com diferentes tipos de música rolando. A minha música tem por base esse amplo leque de possibilidades do que pode ser feito com sons."