I.C. - volume III

Italo Calvino (1923-1985), escritor e crítico italiano, tem um interessantíssimo artigo, “Por que ler os clássicos”, no qual expõe e discute 14 definições que tentam desvendar seu título. Refinado e arguto, Calvino pontua os motivos que fazem com que leitores e críticos considerem certos livros e autores como “clássicos”, mesmo que não tenham se debruçado de fato sobre eles. Apesar de Calvino enfocar apenas a literatura, seus apontamentos não têm de ser restritos a esse universo: troquemos as palavras ‘livros’ por ‘discos’ e ‘leitura’ por ‘audição’ e, facilmente, estará feita a conexão com o cosmo musical. De suas 14 definições, selecionei as 4 que considero mais significativas para o nosso propósito:

1) Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos;
2) Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer;
3) Toda releitura de um clássico é a uma leitura de descoberta como a primeira;
4) Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe;

Esses apontamentos não exigem, penso, grandes explicações. Passemos então a nosso objeto: Albert Ayler (1936-1970).

Há exatos 40 anos, no dia 25 de novembro de 1970, Albert Ayler foi encontrado morto boiando nas águas do East River. Aos 34 anos, Ayler havia tido uma vida criativo-musical relativamente breve, que não se estendeu por uma década (seus discos gravados abrangem um período que vai de 62 a 70). Porém, nesse curto espaço, gerou uma obra complexa, cambiante e de influência ímpar: o suficiente para se tornar, em certo sentido, o maior mito do free jazz. Um clássico por excelência. Esse é Albert Ayler, conhecido por todos –mesmo por quem jamais sentou para ouvir o que o saxofonista realmente ofereceu com seu sopro. Sua criação continua exercendo fascínio também dentre os músicos profissionais, que não cessam de dar sinais de veneração e respeito. Não tenho um levantamento estatístico preciso e amplo, mas arrisco dizer que nenhum nome do free jazz recebeu tantos tributos e releituras da obra como Ayler. 

Essas homenagens começaram a se avolumar logo após sua morte, sendo assinadas por nomes dos mais diferentes cantos: logo em 1971, o Art Ensemble of Chicago gravou a faixa “Lebert Aaly”, homenagem em forma de anagrama (jogo com o nome do saxofonista); no mesmo ano, os europeus do SME (Spontaneous Music Ensemble) soltaram o álbum “One, Two, Albert Ayler”; em 75, o sueco ‘Mount Everest Trio’ gravou “Waves from Albert Ayler”; em 76, o jovem David Murray editou o fantástico “Flowers for Albert”; no ano seguinte, seria a vez do japonês Yosuke Yamashita lançar “Ghosts by Albert Ayler”. E por aí vai... Até o pianista italiano Giorgio Gaslini, autor da trilha do cultuado filme “A Noite” (Antonioni), fez seu tributo, em piano solo, “Ayler’s Wings”, nos anos 90. Em 95, Wadada Leo Smith apresentou seu “Albert Ayler in a Spiritual Light”. Nessa década, um trabalho forte é “Bells” (96), do Prima Materia, de Rashied Ali. De leituras mais inusitadas, há “Ayler Undead” (2001), do Dr. Eugene Chadbourne e seu banjo. Mais recentemente saiu “Ode to Albert Ayler”, álbum de Sunny Murray e Mark O’Leary. Há também os variados grupos que prestam homenagem desde seus nomes, como “AALY Trio” (de Mats Gustafsson), “Witches and Devils” (Vandermark) e o “Die like a Dog” (Brotzmann), com seu primeiro álbum “Fragments of music, life and death of Albert Ayler”. Bom lembrar que isso é apenas uma amostra; a lista não se esgota, nem de longe, por aqui.

Considerando as revisitações mais recentes à obra ayleriana, destaquei três álbuns que mostram formas bastante distintas de absorver, destilar e regurgitar os ensinamentos sonoros desse mestre do saxofone.


*“Spiritual Unity” (2004) tem uma curiosidade já em sua concepção: liderado pelo guitarrista Marc Ribot, o quarteto não conta com um saxofonista. Interessante lembrar também que Ayler muito pouco trabalhou com guitarristas. Ribot esteve ligado à no wave, tendo sido integrante dos Lounge Lizards e assinado parcerias com figuras que vão de John Zorn a Tom Waits e Elvis Costello. Para sua composição, montou um quarteto que conta com uma peça-símbolo: o baixista Henry Grimes, que tocou ao lado de Ayler nos anos 60. Roy Campbell, com seu trompete, assume a voz-sopro. Chad Taylor, dos mais interessantes dentre os bateristas da atual geração, completa o grupo. Para o repertório, Ribot se concentrou em alguns dos primeiros clássicos do músico, como Spirits, Saints e Truth is Marching In.



1. Invocation
2. Spirits
3. Truth is Marching In
4. Saints
5. Bells

*Marc Ribot: guitar
* Henry Grimes: bass
* Roy Campbell: trumpet
* Chad Taylor: drums

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Recorded at West Orange, NJ - October 28th 2004.

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*“Healing Force. The Songs of Albert Ayler” (2007) apresenta um outro capítulo da música ayleriana. Está em pauta seus polêmicos álbuns “Music is the Healing Force of the Universe” e “New Grass”. Marcados pela parceria do saxofonista com sua mulher, Mary Maria Parks, e a absorção de elementos que vão do gospel ao R&B passando por certo ‘hippie-rock’, os dois discos são os menos apreciados pelos fãs. Vinny Golia assume o sax, sem emular o mítico ‘reedman’ –na realidade, em alguns momentos Golia soa mais como Pharoah Sanders. Mais uma vez, as guitarras estão presentes: Hanry Kaiser e Joe Morris (que assume também o baixo). Os vocais ficam por conta de Aurora Josephson. Um disco atual, contemporâneo, com grandes sacadas e sem trair o ‘Holy Ghost’.   

1. New New Grass/Message from Albert (3:21)
2. Music is the Healing Force of the Universe (20:09)
3. Japan/Universal Indians (10:51)
4. A Man is Like a Tree (5:21)
5. Oh! Love of Life (12:25)
6. Thank God for Women (5:37)
7. Heart Love (6:17)
8. New Generation (9:31)
9. New Ghosts/New Message (5:20)

*Vinny Golia: reeds
*Aurora Josephson: voice
*Joe Morris: guitar, double bass
*Henry Kaiser: guitar
*Mike Keneally: piano, guitar, voice
*Damon Smith: double bass
*Weasel Walter: drums

Released: October, 2007.

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*“Tribute to Albert Ayler” (2008) fecha nossa exposição. Tendo à frente Joe McPhee, apoiado por William Parker, Roy Campbell e Warren Smith, o quarteto destila um free jazz contemporâneo em perfeita sintonia com o trabalho original do mestre, mas sem, o que é o mais importante, soar como mero espelho. Curioso ver Roy Campbell mais uma vez em um tributo a Ayler: bom poder ouvi-lo nos dois contextos e presenciar como que um músico talentoso se recria em diferentes situações. Sabor especial emana da faixa 4, “DC”, na qual Campbell e McPhee realizam um incrível diálogo de trompetes. O repertório é mais variado, abordando diferentes etapas da obra de Ayler. Só por McPhee e Parker o disco já deveria ser encarado como essencial.


1. Music Is the Healing Force of the Universe
2. Muntu 
3. Obama Victory Shoutout
4. DC 
5. Prophet John
6. Universal Indians

*Joe McPhee: tenor, pocket trumpet, voice
*Roy Campbell:  trumpet, voice
*William Parker:  bass, voice
*Warren Smith:  drums


Recorded in Pantin, France on November 21, 2008.