Quem tem medo de Lou Reed? (cinco passeios por bosques extremamente ruidosos)

Os ingressos para as duas apresentações de Lou Reed em SP esgotaram em menos de duas horas. Fãs do músico americano enfrentaram longas filas na tentativa de ver/ouvir o ídolo. Todavia, nem tudo o que se escutava das pessoas que estavam ali, em pé e ansiosas em relação à possibilidade de não conseguirem seu ingresso, era expectativa positiva.

Não acredito que o Lou Reed vai tocar apenas essa merda.”
É muito azar esperar tanto para ver o cara ao vivo e ele resolver ressuscitar isso quando chega minha vez [de vê-lo].”
Acho que vai chegar um momento durante o show que vai dar até vontade de cuspir no palco.”

Essas foram algumas frases que escutei de pessoas que estavam na fila em uma das unidades do Sesc, na última quinta-feira, quando os ingressos começaram a ser vendidos. Com suas falas, os jovens e (ao menos assim se pensam e se vendem) “moderninhos” fãs do velho líder do Velvet Underground desnudaram-se artisticamente muito mais puristas e conservadores do que possam imaginar: toda a reclamação era por conta do famigerado “Metal Machine Music”, a longa experiência noise (vinil duplo quando saiu) gestada por Lou Reed em 1975 e resgatada em sua atual turnê como “Metal Machine Trio”. O que essas pessoas demonstram é que não conseguem se interessar (compreender, apreciar) nada além de canções com certos tiques modernosos.
Assusta ver, ainda hoje, tal tipo de percepção artística, passados 35 anos desde o lançamento do álbum. Em entrevista recente, Reed falou sobre a expectativa que tinha na época em que planejou o “MMM”:

I honestly thought: "Boy, people who like guitar feedback are gonna go crazy for this. If you like loud guitars, here we are.”

Se essa era de fato a expectativa dele, a péssima recepção do trabalho –que chegou a gerar uma ‘lenda’: o músico havia feito ‘aquilo’ apenas para ter seu contrato, que chegava ao fim, rescindido com a RCA –deve tê-lo decepcionado imensamente.

É curioso que as mesmas pessoas que criticam o 'MMM' estufem o peito para falar da radicalidade e da ousadia do Velvet Underground mesmo que, na verdade, esses traços contemplem apenas uma face da mítica banda. Clássicos como “Heroin” e “White Light/White Heat” são o quê? Belas canções temperadas com grossa sujeira guitarreira. O VU realmente apostou mais longe em “Sister Ray”, mas esse ficou como o ponto extremo de suas criações. Enquanto uma banda como os "Les Rallizes Denudes" seguiu adentrando os rumos demarcados por Sister Ray, o VU recuou, até desembocar na suavidade de “Loaded”.




A jornada solo de Lou Reed não é diferente. E “Metal Machine Music” é uma curva fora, espremido entre os comportados “Sally Can’t Dance” (1974) e “Coney Island Baby” (1976). Por tudo que fez nos dez anos anteriores, Reed tinha autoridade e liberdade para assinar sua peça noise –pena que não tenha dado continuidade a tal rumo. Então, qual o motivo de tanta chiadeira? Muitos responderiam: porquê isso não é música! E esse é o ponto nevrálgico da polêmica: o que as pessoas consideram música?

Ao menos duas frentes antagônicas podem ser evidenciadas dentre as diferentes respostas que comumente são dadas à questão: de um lado, o divertimento: música é para cantarolar junto, para dançar a noite toda, para se desafogar do cotidiano opressor, se distrair da vida dura; de outro, a música é encarada a partir de sua função e ação social, transformadora, compromissada, de conscientização política e cultural (cabem aqui até mofados ufanismos nacionalistas). E por trás de qualquer uma dessas visões está o principal: a natureza e o objetivo da arte, rotineiramente abordados de forma superficial e ligeira.

(prefiro parar e ouvir John Cage exaltar a música como introdução ao caos da vida.)


O historiador inglês Paul Griffiths (autor de livros básicos como “A Música Moderna” e “Enciclopédia da Música do Século XX”) nos lembra que, após 1900, “a gama de sons que se poderiam considerar musicais aumentou amplamente”.
No âmbito teórico e acadêmico, houve o advento da nova gramática composicional de Arnold Schoenberg (1874-1951), o dodecafonismo. No lado das vanguardas (mais ação e menos teoria dura), o Futurismo de Luigi Russolo (1885-1947) trouxe seu manifesto L’Arte dei Rumori , de 1913, que elegia o ruído e a cacofonia das metrópoles como componentes constituintes do fazer musical. Nas décadas seguintes, tivemos manifestações diversas em defesa de uma nova escuta e compreensão sonora, como a série Imaginary Landscape, de John Cage (1912-1992), criada entre 1939 e 1952 (que se utilizava de receptores, geradores de freqüências, toca-discos e dispositivos eletrônicos vários); não podemos esquecer também as experiências eletrônicas/eletroacústicas pioneiras de Karlheinz Stockhausen (1928-2007) entre os anos 50/60. Mesmo assim –estamos falando de buscas e obras realizadas há décadas– o que domina as audições, independente dos gêneros que estejamos tratando, é um campo limitadíssimo de assimilação sonora.

Não parece exagero apontar que as propostas de Russolo apenas encontraram sua realização plena nas criações que ganharam vulto a partir dos anos 70/80 e foram rotuladas e enquadradas sob o selo noise. O experimento de “Metal Machine Music” deveria ser deglutido a partir desse enfoque e não por certo ranço saudosista das ‘mais belas canções’ de Lou Reed.

Como o 'MMM' é bastante conhecido e tem ampla distribuição, selecionei alguns sons que bem ilustram o mundo noise e mostram aos desavisados que o velho Lou não está sozinho em seus devaneios ruidosos.  


Nessa breve seleção, feita sem grandes planejamentos, acabaram por prevalecer os japoneses.
O Japão sempre se mostrou uma terra elevadamente frutífera para as experiências noise. As particularidades do som nascido por aquelas bandas fizeram com que críticos passassem a falar em “harsh noise” e "japanoise". Do noise setentista, também abriram-se outras subdivisões, como o 'free noise' e o 'power noise'.


*************************************




Antes de se falar em noise como estilo independente, o saxofonista Kaoru Abe e o guitarrista Masayuki Takayanagi se juntaram para algumas gigs e deram os rumos do que viria depois. O ano era 1970 e, dos encontros, nasceram três discos: “Kaitaiteki Koukan”, “Gradually Projection” e a peça mais radical de todas: "Mass Projection". Em duas faixas, munidos apenas de sax e guitarra, os dois músicos criaram alguns dos momentos musicais mais sujos realizados até então. Seminal, "Mass Projection" anunciava um cosmo sonoro sem concessões.



 
No final da década de 70, em NY, surgiu um trio que se tornou um dos mitos da seara noise: o Borbetomagus. Interessados primeiramente em fazer free jazz, os saxofonistas Jim Sauter e Don Dietrich, acompanhados pelo guitarrista Donald Miller, acabaram por aprofundar as conquistas de Abe e Takayanagi de quase uma década antes. Nesse álbum, estão reunidas faixas captadas durante os primeiros tempos do trio.





Uma das lendas do japanoise, o Hijokaidan veio ao mundo na mesma época do Borbetomagus. Tendo à frente o guitarrista Yoshiyuki ‘Jojo’ Hiroshige, o Hijokaidan tem em Toshiji Mikawa seu outro líder. No período de comemoração de uma década de existência, o grupo lançou “Modern”, um de seus mais explosivos trabalhos. O disco traz apenas uma faixa, com mais de 1 hora de pura distorção auditiva. Também participa do disco a insana Junko (voz/baixo).


 
Talvez Masami Akita, o homem por traz do projeto Merzbow, seja o mais conhecido artista noise da atualidade. Tendo trabalhos com grupos ‘populares’ como o Sonic Youth, o nome Merzbow acabou por ser difundido entre pessoas que não estão estritamente focadas no terreno noise. Mas nada disso amansou a sonoridade criada por Akita com suas parafernálias eletrônicas. Basta poucos segundos desse “Hybrid Noisebloom” para constatar isso.






Dono do projeto mais novo dentre os apresentados, Yamazaki "Maso" Takushi é quem está por trás do “Masonna”. Na linha de Merzbow, o Masonna (Mademoiselle Anne Sanglante Ou Notre Nymphomanie Auréolé) mexe com ruidosidades eletrônicas, adicionadas aos insanos vocais de 'Maso'. Diferente dos discos acima, esse "Inner Mind Mystique" mostra faixas mais curtas.