O free jazz primeiro repassado em nossos palcos

As apresentações de Ornette Coleman em SP fecham um tríptico de figuras-chave do free jazz primeiro que por aqui passaram em tempos recentes: em 2007, esse ciclo foi iniciado com a vinda de Cecil Taylor; neste ano, outros dois vértices completaram o processo: Pharoah Sanders e, agora, Mr. Coleman. Quem esteve nessas três apresentações pôde notar as diferenças entre o que cada um desses músicos ainda tem a oferecer.

Enquanto Pharoah Sanders veio como convidado ilustre de um outro grupo ('Chicago Underground'), como atração especial, Ornette desembarcou com seu próprio quarteto, com o qual tem desenvolvido um trabalho de grande vulto nos últimos anos (turnês, disco, novas composições etc.). Durante o concerto do qual participou, Pharoah (no mesmo Sesc Pinheiros que recebeu Ornette, nos dias 21 e 22 de agosto) foi cercado por músicos que buscaram criar o ambiente ideal para que o saxofonista exibisse sua idolatrada vulcânica pegada. Tal esquema estruturado para o show chegou a contar com samples e loops infinitos sacados com a intenção de resgatar o clima dos trabalhos afro-espirituais de Pharoah nos idos 60/70 –aos quais o saxofonista respondeu com visível alegria, que incluiu curiosas dancinhas... É como se o pessoal que o convidou quisesse deixar o veterano saxofonista mais à vontade, solto, em casa. O concerto teve seus momentos de maior apelo. Rob Mazurek e Chad Taylor são músicos excepcionais. E Pharoah, além de ter se divertido, mostrou que ainda tem ‘punch’ para fazer nossos ouvidos vibrarem com seu sopro supersônico.    

Já Ornette Coleman veio com seu quarteto; o palco está ali para ser dominado por suas criações. Essa formação com que veio ao país, que Coleman reuniu em meados de 2000 e gerou seu único disco nessa década (o festejado “Sound Grammar”, de 2006), pode receber qualquer crítica, menos a de que não exalam alto ponto de sintonia e percepções sonoras afins. Nada é suplérfluo ou desnecessário. Falta stamina, falta a surpresa improvisativa inerente ao free jazz? Sem dúvida. Tanto que foram raras as deserções durante o show de ontem no Sesc. O que talvez incomode e decepcione um pouco é que Ornette se estabeleceu em uma zona de conforto e segurança, de onde resgata antigos temas (“The Sphinx”, “Lonely Woman”, “Chronology”, “Theme from a Symphony”), mesclando-os a outros recentemente criados, salpicando free jazz, funk, rock e clássico, mas sem criar momentos de intensidade que chacoalhe o espírito. Ver Ornette no palco é saber que se presencia um momento histórico (especialmente para quem nunca o viu ao vivo antes), que talvez não se repita e que valeria à pena mesmo que não fosse um belo concerto (o quê não é o caso). Porém, não há surpresa nem estranhamento: as músicas parecem um tanto quanto engessadas, ensaiadas, sem espaços para a livre improvisação, para o risco de fato.

O terceiro vérttice desse tríptico se desnudou a nossos olhos há três anos, mais exatamente na noite de 28 de outubro de 2007, quando Cecil Taylor se apresentou no palco do Auditório do Ibirapuera. Taylor, em apresentação solo, mostrou toda a pujança de seu processo artístico. Não à toa, desses três gigantes, apenas o show de Cecil (que se resumiu a uma apresentação) não estava lotado, perdendo ainda mais gente com o seu caminhar. Apesar do piano parecer mais dócil e familiar que o sax, Taylor não deixou dúvidas de que permanece como o mais radical dentre os ícones vivos do free jazz. O pianista tocou no finado TIM Festival, que tinha três ou quatro apresentações por noite, com intervalo de cerca de 15 minutos entre cada uma. Taylor surgiu no palco durante o intervalo, com muita gente ainda fora da sala. Alheio a essas formalidades, o pianista adentrou o cenário, calçando apenas meias, chacoalhando um instrumento percussivo (tipo um pandeiro meia lua, se a memória não me trai) e recitando um de seus poemas (Sound! Sound!, gritava o insano pianista). Logo dirigiu-se ao piano, jogou o “pandeirinho” dentro do instrumento e começou a tocar acidamente. Sua divagação improvisativa e ruminativa se estendeu por apenas uns 40 minutos, quando simplesmente levantou-se e foi embora. Considerando-se todo o processo, afirmo que foi uma das apresentações musicais de maior radicalidade artístico-expressiva que presenciei. Cecil não era a última apresentação da noite (somente na cabeça do produtor do TIM para uma barbaridade dessas ocorrer: falta de respeito, no mínimo. Após o maior pianista vivo tocar, colocaram a bandinha do trombonista Conrad Herwig para exibir seu ‘Latin Side’!!). Levantei-me também, junto com o mestre dos teclados, e me retirei da sala: seria um pecado ouvir qualquer outro músico após aquela apresentação.

Para os que presenciaram as três apresentações históricas, foi dada a oportunidade de saborear campos bastantes amplos da música gestada hoje por esses pioneiros.

*Ornette Coleman, 80, mostrou que está em um ponto final de sua trajetória (claro que tudo pode se alterar nessa estrada), no qual revisar sua obra, com um conjunto estável, que oferece a ele a estrutura ideal para manter as coisas sob controle, é uma parte fundamental do processo.

*Pharoah Sanders, 70, não está preocupado nem em revisitar seu passado nem em destilar um processo que soe fresco. Tem excursionado um pouco com seu quarteto, feito uma música mais comportada (isso desde os 90s, um pouco antes até), com gravações surgindo de tempos em tempos.

*Cecil Taylor, 81 (quando esteve aqui, 78), continua circulando, principalmente solo, desfiando seu dedilhado inflamado e sua palavra poética. Andou se apresentando com Tony Oxley e Amiri Baraka, mostrando que ainda se mantém com pegada para mexer com o público e incomodar os desavisados e preguiçosos.