I.C. - volume 0I

Aos 80 anos de idade, Ornette Coleman desembarca no país pela primeira vez, sob a aura de “pai do free jazz”. É claro que tal designação, como outras que tentam sistematizar as mutações artísticas de qualquer período, é arriscada e parcial. Mas parece óbvia a relevância do surgimento de Ornette para as transformações que sacudiriam o mundo do jazz e abriram as clareiras para o que se tornaria conhecido como “Free”. As contribuições diretas e indiretas para um ponto de ruptura na música (ou em qualquer outro campo das Artes) costumam ser múltiplas. Quando há, por trás desses momentos singulares de alteração brusca de rumo, um manifesto (ex: o Futurismo) ou um grupo unido que reivindique novos tempos, as datações e demarcações ficam mais simples e claras –e isso não aconteceu no jazz da virada dos 50/60. De qualquer forma, é indiscutível que a chegada de Ornette causou um choque geral na cena musical do período.



O saxofonista, nascido em 1930, já estava com 28 anos de idade quando seu nome passou a ser comentado na cena jazzística. Coleman havia começado a se envolver com música ainda na escola, na década de 40, em sua Fort Worth (Texas) natal. Nesse tempo, conviveu com figuras que se tornariam também conhecidas nas décadas seguintes: Dewey Redman, Prince Lasha e Charles Moffett. A peregrinação de Ornette até 1958 é similar à de Charlie Parker na década anterior: passou por diversas bandas distintas (inclusive de R&B), por locais variados, tocando escondido sem que ninguém o percebesse ou sendo menosprezado quando exibia sua sonoridade mais peculiar.

Um de seus parceiros de som mais antigos foi o baterista Ed Blackwell (1929-1992). Em 1956, Coleman chegou a Los Angeles ao lado de Blackwell e do pianista Ellis Marsalis (que ironia!). Nesses tempos, os três músicos tocaram juntos, em trio ou com outros instrumentistas. Mas não seria ao lado deles que Coleman emergiria. Foi em 1958 que as coisas começaram a ganhar vulto, já em um período em que Ornette havia encontrado seu parceiro fundamental na época, Don Cherry, com quem manteve um trabalho constante e vital até 1962, quando o saxofonista se retirou da música por dois longos anos.

Ouvir as primeiras gravações de Ornette revelam o porquê do burburinho em torno de seu grupo, principalmente se nos atentarmos ao fato de que o hard bop era o som dominante de então, e Sonny Rollins, o imperador do saxofone.
Relevante notarmos que no entorno de seu quarteto outras inquietações sonoras rondavam ou antecipavam o que estava para acontecer: Monk, Mingus (ouçamos “Pithecanthropus Erectus”, de 56), Cecil Taylor, que também em 56 havia lançado seu “Jazz Advance”. Alguns, para diminuir a relevância do papel de Ornette, gostam de dizer que Lennie Tristano já havia começado a fazer “essa coisa de free improvisation” uma década antes... Ok, tudo muito correto. Mas basta ouvirmos os trabalhos do ‘Ornette Coleman Quartet’ de 1959 para não termos dúvida: nada jamais havia soado daquela forma antes nas trincheiras do jazz.


Como todo criador de obra artística que causa impacto e estranhamento, Coleman passou a ser tratado como gênio por uns (anunciador de uma nova era e de um cosmos ainda a ser desvendado) e estúpido por outros (por trás de sua sonoridade havia apenas uma verdade: não sabia tocar). Importante naquele momento foi o saxofonista ter encontrado os parceiros corretos para desenvolver suas idéias: além de Cherry, Charlie Haden e Billy Higgins.

Um pouco antes disso, houve sua primeira gravação, “Something Else!!!!”, de fevereiro de 1958. Apesar de o músico já estar com sua sonoridade bem demarcada, seu sax ainda não se enquadra com perfeição ao toque dos outros músicos, que não estavam operando na mesma sintonia. Don Cherry já havia se juntado a suas aventuras sonoras, mas o pianista Walter Norris e o baixista Don Payne, que compõem o quinteto desse álbum, não pertenciam àquele universo. Depois veio “Tomorrow is the Question!”, captado entre janeiro/março de 1959. Mais uma vez, o grupo de Coleman, que contou com os baixistas Red Mitchell e Percy Heath, e o baterista Shelly Manne, não atingiu sua plenitude.  Porém, ainda naquele ano, Coleman juntaria seu quarteto ideal e gestaria os seminais “The Shape of Jazz To Come” (de maio de 59) e “Change of the Century”: o free jazz estava sedimentado. Foi nesse 1959 que o quarteto passou a se apresentar no mítico clube nova-iorquino “Five Spot”, levando aquela música nova, seis dias por semanas, a ouvintes que se dividiam entre seduzidos e indignados. 

O ponto final dessa aventura primeira viria um pouco depois, há exatos 50 anos: foi em 21 de dezembro de 1960 que Coleman colocou no estúdio dois quartetos e gravou uma peça de improvisação coletiva que durou (espantosos para a época) 37 minutos. A peça, chamada “Free Jazz”, é um dos monumentos da música em todos os tempos.

Dos trabalhos que antecederam o álbum “Free Jazz”, Change of the Century é o cume. Gravado em outubro de 1959, Change of the Century anuncia até a nomenclatura que caracterizaria o gênero: uma de suas faixas mais intensas chama-se exatamente “Free”. Apesar de estarem juntos há apenas alguns meses, a sintonia dos músicos é perfeita. O jovem Charlie Haden, com apenas 22 anos na época, trouxe um toque que os outros baixistas que o antecederam ao lado de Coleman não haviam sido capazes de oferecer. A seu dedilhado, é aberto um longo espaço em “The Face of the Bass”. O disco começa com “Ramblin”, com seu tema marcante, cantado por sax e trompete, que carrega leve sotaque do tema que comporia “Free Jazz”. Coleman exibe seu solo mais livre na última faixa, “Change of the Century”, para fechar o disco sem deixar dúvidas em relação à proposta do trabalho. Era tempo de mudanças, hora de espanar o mofo e se preparar para o assombroso e fascinante 60s.

 
A1 Ramblin' (6:34)
A2 Free (6:20)
A3 The Face of the Bass (6:53)
B1 Forerunner (5:13)
B2 Bird Food (5:25)
B3 Una Muy Bonita (5:51)
B4 Change of the Century (4:41)

*Ornette Coleman: alto saxophone
*Don Cherry: trumpet [pocket]
*Charlie Haden: bass
*Billy Higgins: drums


*Recorded at Radio Recorders, Hollywood, CA.
*Recording dates:
Tracks 3, 5 to 7 - 8 October 1959.
Tracks 1, 2, 4 - 9 October 1959.
(Orignally released on LP as Atlantic 1327 in June 1960)