O free jazz e a free improvisation não representam as únicas esferas sonoras que vivem às margens. Se pensarmos na ala rocker, basta ver como se compõe o universo do black metal, que também sobrevive em um mundo paralelo. Essa realidade também alcança o campo conhecido como erudito. Apesar de o nascedouro das vanguardas eruditas ser praticamente centenário (pensemos nos primeiros trabalhos de Stravinsky e na estruturação do dodecafonismo por Schoenberg), ainda permanecem fora do circuito das grandes orquestras e salas de concerto. Peguem a programação da Osesp, da Filarmônica de Berlim ou da Sinfônica de Londres, em qualquer ano, e verão que é a música dos séculos XVIII e XIX que predomina. Quando algum autor contemporâneo entra na programação, ou é porquê sua sonoridade é ‘neoclássica’ ou porquê resolveram fazer um concerto ‘de perfil moderno, diferente’, como algo exótico, como ver um filme mudo em uma sala de cinema convencional. Qual o motivo do conservadorismo ainda comandar o universo musical? Por que isso não ocorre, por exemplo, no mundo das artes plásticas?
Nesse cenário, o surgimento de figuras como Gilberto Mendes (1922, Santos) mostra que não adianta ficarmos apenas nos lamentando pelo estado das coisas. Neste momento, Mendes comanda a 45.ª edição do Festival Música Nova – que acontece agora, se estende até o fim do mês –, destinado a apresentar sonoridades contemporâneas. O evento, criado por ele em 1962, tem sido realizado com periodicidade anual, com pouca (ou menos ainda) verba, com ou sem apoio ou perspectiva de público amplo ou cobertura midiática. Mendes conduz o evento heroicamente há quatro décadas, independentemente da descrença de muitos em relação à vitalidade da “música nova”.
A história de Gilberto Mendes impressiona pela sua singularidade. Nascido em Santos (litoral de SP), o compositor teve de trabalhar, até se aposentar, como bancário na CEF, pois, óbvio: era impossível sobreviver da música radical que fazia. Foi assim, ganhando a vida em uma agência bancária, que Gilberto Mendes gestou uma das obras mais ricas e criativas do repertório contemporâneo. Indo de criações de uma radicalidade mais dura, embebidas no serialismo integral idealizado por Boulez e Stockhausen, passando pela liberdade aleatória e a soltura dos happenings de John Cage, alcançando o lirismo em lieder apoiados sempre em poesia brasileira, a obra de Mendes registra um catálogo de aproximadamente 180 composições – a maior parte desse material, claro, não dá para encontrar editada no país... Mendes sempre advogou que se deve fazer música sem copiar os rumos europeu e norte-americano (onde estão seus principais ouvintes).
“Música experimental, mas à minha maneira. Experimento com linguagens, combinatório, visando uma nova linguagem para um momento novo, atemporal. Naturalmente pesa nessa experiência o meu repertório, os sons que formaram meu gosto musical. Outro compositor, com outro gosto, usando a minha técnica, vai tecer uma outra malha sonora”, in “Viver sua Música” (Edusp/Realejo, 2008).
Nesse álbum, estão reunidas peças de Mendes dedicadas, principalmente, a trabalhos com coro – exceção de Blirium, composição aleatória em piano solo. Dentre essas peças, destacam-se as experimentações de “Nascemorre” e “Vai e Vem”. Os efeitos alcançados nas duas composições impressionam, não apenas pela inusual instrumentação, mas pelo trabalho com a palavra:
*Nascemorre – poema de Haroldo de Campos – experiência de música aleatória e microtonal com vozes corais, percussão, 2 máquinas de escrever, tape. 1962/63.
*Vai e Vem – poema de José Lino Grünewald – coro, tape, toca discos, papel de seda sobre pente , flauta doce. 1969.
01 Blirium C-9 (piano solo)
02 Asthmatour (texto de Antonio José Mendes)
03 Motet em ré menor (Beba Coca-Cola) (poema de Décio Pignatari)
04 Nascemorre (poema de Haroldo de Campos)
05 Vai e Vem (poemas de José Lino Grünewald)
-Caio Pagano, piano
-Madrigal Ars Viva
-Roberto Martins, regente
Recording Date: London, 1979
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Próximos destaques da 45.ª edição do “Festival Música Nova”:
"no Sesc Vila Mariana"
*“Fragmentos Kafka”
-Ópera 24 (1986) de György Kurtág, para soprano e violino.
Hoje (dia 15), às 20h30
*Rohan de Saram (cello) e Beatriz Alessio (piano) – peças de Morton Feldman, Elliot Carter e Gilberto Mendes.
Dia(s) 19/10, 21/10
Terça e quinta, às 20h30.
Terça e quinta, às 20h30.
*Ensemble Continuum (NY)
Dia 27/10, quarta, às 21h.
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"no Sesc Consolação"
*Andrea Kaiser e Joaquim Abreu (voz e percussão)
Dia 19/10 Terça, às 21h
*Alvin Lucier (compositor americano; música eletrônica viva)
Dia(s) 20/10, 21/10, quarta e quinta, às 21h.
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