A década de 90 representou, provavelmente, o segundo período mais efervescente do mundo free jazzísitico. E dentre os variados talentos que emergiram ou renasceram (Gayle, Gustafsson, Shipp, Vandermark, Perelman, Tsahar, Ibarra) na época, brilha em especial um grupo: o David S. Ware Quartet. Qualquer livro ou artigo que encampe o free/jazz dos anos 90 e ignore a existência desse grupo, já começou mal... Apenas na década de 90, o David S. Ware Quartet produziu quase uma dúzia de álbuns excepcionais, obrigatórios em muitos casos.
A rara estabilidade do quarteto, que contou permanentemente com David S. Ware (sax), Matthew Shipp (piano) e William Parker (baixo), entre 1990 e 2007, além de bateristas do nível de Susie Ibarra e Marc Edwards, ajuda a explicar a complexidade e profundidade de sua criações. Criptology, um dos pontos máximos desse conjunto, foi gravado no fim de 1994. Junto a Oblations and Blessings, de 96, Criptology apresenta o quarteto em potência máxima. A partir dos temas/motivos desenvolvidos por Ware, o grupo cria tempestades sonoras que revitalizam o caixilho que estrutura e simboliza o free jazz. Nada de recopiar o que os mestres passados fizeram: a música é nova, com sabor e marcas únicos.
Ware estava em Criptology no ápice do desenvolvimento de sua forma sonora. Os sopros longamente expandidos, encorpados, mas em uma esfera mais aguda (ayleriana) do que grave (pharoaniana), sempre esmigalhando e recaptulando os temas simples, mântricos, com os quais costuma(va) trabalhar.
A engenhosa arquitetura do quarteto só era possível a partir da complexa relação entre as cordas de Parker e os teclados de Shipp. Para entender o papel fundamental de ambos, nada melhor do que ouvir a faixa “Dinosauria”: a peça é aberta pelo pianista, que dedilha primeiramente o tema, que será, na sequência, destrinchado pelo sax, enquanto Matthew, de forma pontilhista, pinga acordes mínimos. Aos 5m30, Ware abandona a faixa; Shipp retoma o primeiro plano, em solo que se estende até os 6m45, quando reassume o pontilhismo, cedendo o comando a Parker, que surge com arco; os dois alternam-se assim até “Dinosauria” se encerrar, passados os 10 minutos.
Já Whit Dickey era o cara perfeito para as baquetas nessa fase mais explosiva. Não sendo um baterista muscular, Dickey tinha a intensidade ideal para não abafar Shipp _fundamental na concepção do grupo_ e dar um suporte encorpado e acelerado o suficiente para o sax de Ware voar em sua plenitude.
Se a improvisação está na fundação que sustenta o som do conjunto, as faixas sempre nascem de motivos apresentados pelo saxofonista. O sistema de criação de Ware está presente em toda a trajetória de seu quarteto. E Cryptology revela um dos momentos mais excitantes dessa estética, com seus rompantes ácidos e desesperados.
As seis ‘composições’ do álbum são divididas em a, b, c, d, e, f, reforçando a impressão de serem apenas parcelas de um todo. Ouvido em sequência, o álbum apresenta uma lógica de desenvolvimento, com elevações e contenções rumo à assombrosa “The Liberator”.
Cryptology (‘criptologia’) nos convida a decifrá-lo, a embrenharmo-nos em sua complexidade orgânica, em sua tensão inesgotável e radiante.
*David S Ware: tenor saxophone
*Matthew Shipp: piano
*William Parker: bass
*Whit Dickey: drums
a) Solar Passage (6:42)
b) Direction : Pleiades (9:04)
c) Dinosauria (10:04)
d) Cryptology/Them Stream (14:19)
e) Panoramic (10:45)
f) The Liberator (10:44)
a) Solar Passage (6:42)
b) Direction : Pleiades (9:04)
c) Dinosauria (10:04)
d) Cryptology/Them Stream (14:19)
e) Panoramic (10:45)
f) The Liberator (10:44)
Recorded on 2 December 1994 at Sound On Sound Studio, NYC.