Rumos vários de Mr. Shipp


Matthew Shipp é um dos nomes do jazz contemporâneo mais abertos a outros rumos musicais. O pianista demonstra não ter preconceitos, sempre atento e pronto para experimentar novos territórios. Das parcerias mais conhecidas, está a que fez com os rappers do Antipop Consortium (que estiveram há pouco em SP), que rendeu um álbum em 2003.




Uma das experimentações mais curiosas dessas suas andanças nasceu do encontro com J. Spaceman (ou Jason Pierce, uma das cabeças do Spacemen 3 e do Spiritualized). Jason sempre demonstrou interesse por espacializações e minimalismo (falo sobre minimalismo musical de fato: Steve Reich, La Monte Young). Basta ouvirmos Dreamweapon, criação do Spacemen 3, de 1990, que conta com uma faixa de mais de 40 minutos de efeitos circulares dominados por ondas de ruídos lisérgicos.O hipnotismo criado por frases repetidas ao infinito, com fragmentos melódicos que nunca se completam, também dá o tom deste SpaceShipp. Guitarra e teclados moldam um tempo-espaço, de perfil estático, que pode entediar muita gente _como um quadro de Malevitch ou uma peça de Morton Feldman. A lentidão cíclica, que, apesar da leveza, não tem brechas de sons (nunca há silêncio), exige disposição redobrada para ser acompanhada em toda sua amplitude. De fato, música não destinada a ser ouvida a qualquer momento.


Experiência realizadas mais vezes a partir da última década levou Shipp a trabalhos, ao lado de antigos companheiros (William Parker, Guillermo Brown), com uma visada ligada a sonoridades eletrônicas contemporâneas. O disco “Nu Bop” (2002) é um marco nesse sentido. Na sequência, vieram “Equilibrium” (2003) e “Harmony and Abyss” (2004), que contaram com a participação de FLAM nos samplers e sintetizadores, dando um ar ‘nu jazz’ e abrindo a música de Shipp a um público mais amplo do que o habitual.




Paralelamente e em diálogo com esses álbuns, o pianista comandou a coleção “Blue Series Continuum”, para o selo “Thirsty Ear”, que uniu produtores e músicos dos campos eletrônico/hip hop com pesos pesados da free music: Evan Parker, Daniel Carter, Roy Campbell, Guillermo E. Brown, William Parker, Tim Berne.
Um dos melhores frutos dessa série é “Masses”, de 2001. O disco reuniu o duo eletrônico britânico ‘Spring Heel Jack’ (Ashley Wales e John Coxon, ligados ao drum’n’bass/jungle), com caras do naipe de Evan Parker e Roy Campbell _além de Shipp. Bases eletrônicas em diálogo com sopros free. Das 10 faixas do álbum, merecem atenção maior “Chiaroscuro”, com seu extenso/intenso sax em solo, e “Masses”, que carrega picos de ataque coletivo de sopros.




Os resultados trazem passagens eletrizantes que nos faz pensar: será que esse tipo de projeto ajuda a estimular o público do ‘Spring Heel Jack’ e do 'J.Spaceman' a buscar algo sobre os músicos da free music que ali estão (e vice-versa)?

Uniões (improváveis para muitos) como essas ajudam a mostrar o quanto pode ser simplista e empobrecedor se fechar em guetos artísticos: longe de qualquer relativismo pós-moderno, no qual tudo não passa de uma ponta de um prisma, dependendo sempre do ponto de vista - longe disso: se não tivermos um prumo estético claro, que nos guie, nos perdemos tanto em preconceitos ligeiros quanto em certo ecletismo superficial e duvidoso-, é importante compreendermos que há trocas ricas e intercâmbios possíveis entre sonoridades diversas. John Zorn já disse que as prateleiras de lojas de discos deveriam ter uma etiqueta “música radical” (ou algo assim) que englobasse do free jazz ao grindcore, da free improvisation ao death metal. Pode soar exagerado, mas Zorn tem certa razão. O problema será convencer o público-ouvinte. Que as experiências de Matthew Shipp ajudem a abrir os ouvidos de muitos.