Ligeiras impressões de uma música grandiosa

Ivo Perelman, Matthew Shipp, Joe Morris e Gerald Cleaver ofereceram um dos concertos mais brilhantes vistos nos palcos do país em um bom tempo. Quem esteve na noite de ontem no Sesc Pompeia se deparou com música em seu mais elevado ponto de expressão. Música pura, sem concessões. A interação do grupo é tamanha que é difícil acreditar que, antes dessa apresentação, haviam tocado apenas uma vez, no sábado passado, em estúdio, quando gravaram um disco. Em cerca de uma hora, o quarteto exibiu um nível de exuberância artística inimaginável _se não soubéssemos o patamar dos músicos que ali estavam.

Perelman tocou como não fazia desde o começo dos 2000. Ao menos desde Suite for Helen F. (2002), o saxofonista não explorava intensamente, da forma como fez ontem, a expressão vulcânica de seu sopro. O que ficou demonstrado é que não foi apenas o ciclo de parcerias do saxofonista com as cordas que se fechou: foi sinalizado o mergulho em uma outra esfera. Ainda na primeira parte da apresentação, Perelman já deu sinais de que estava com uma pegada mais intensa e ácida do que das outras vezes que tocou no país. Sem perder o tônus durante todo o concerto, o saxofonista imprimiu sua marca sem nunca ofuscar os outros músicos.

Antes da última entrada do saxofonista, foram Morris e Cleaver que mexeram com os ouvintes: imprimiram, em duo, uma cadência contagiante, circular, que parecia destinada à infinitude. Tal passagem acabou por desempenhar papel de intermezzo rumo ao final/epílogo apoteótico _no qual Perelman fez muita gente entender o porquê dele ser um dos principais saxofonistas da cena free mundial. Não sei se essa última parte vai se repetir nos concertos de hoje e amanhã ou se, realmente, nasceu apenas no momento, para nunca ressurgir. Sei é que o impacto foi tal que é difícil imaginar que alguém presente não tenha sido absorvido pela encantatória e inebriante sequência final.


Euforia e melancolia: rara será a oportunidade de podermos ver novamente, em uma fria noite de quinta-feira, alguém como Matthew Shipp exibindo sua fina arte. Shipp é o mais importante nome do piano contemporâneo. Já alcançou o panteão habitado por Monk e Cecil Taylor. Ouvir/ver Shipp é compreender que a grande música não demanda comparações do tipo “toca como Coltrane”, “toca como Miles”: de delicados fragmentos melódicos à robustez imposta por sua martelante mão esquerda, Shipp mostra seu caminho, rumos próprios desatados de filiações.

Quem esteve lá e conhecia Joe Morris deve ter ficado com vontade de vê-lo à guitarra. Não que Morris não demonstre grande domínio do idioma do baixo, ao qual tem se dedicado há não muito tempo. Mas ele é, simplesmente, o mais importante free guitar player em atividade. Morris disse que não abandonou a guitarra, que trabalha, paralelamente, com os dois instrumentos. Porém, nesse momento, tem se focado mais no baixo. Não dá para saber até onde vai essa sua experiência com o baixo. De qualquer forma, Morris e cordas representam uma associação mágica, sem brechas.

Já Gerald Cleaver é o propulsor rítmico do grupo. Longe de ser um baterista muscular, Cleaver, sempre discreto, trabalha intensamente com pratos e chimbal e mostra que não é à toa que aponta Tony Williams como uma de suas influências. Se ele e Tony trabalham em contextos diferentes, não é absurdo ver certa linhagem que os une.

Depois do show, Shipp e Morris ficaram a vagar pelo saguão, conversando com quem se aproximasse: duas das maiores genialidades da música contemporânea, ali, como se fossem apenas mais dois músicos no fim do expediente, no bar onde tocam todo final de semana...

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Ps: quem estiver pelo interior do Estado, hoje o show é gratuito, no Sesc Bauru. No sábado, o endereço é o Sesc Osasco.