Mestre Hermeto

Hermeto Pascoal é uma das figuras mais ‘conhecidas’ no meio musical nacional. Sem dúvida, todos sabem quem é ele. Lamentável é que, quando se trata de conhecer, de fato, a sua música, a história seja diferente. Hermeto, o mago, o bruxo, aquele cidadão amalucado, de revolta cabeleira branca, tocador de panela, chaleira e apito. Quem está disposto a ignorar a personagem curiosa e exótica e prestar atenção no grande criador musical?

Histórias pitorescas e anedotas não faltam quando o assunto é Hermeto: quem nunca ouviu falar que ele foi proibido de tocar com o Quarteto Novo nos anos 60, em um desfile da Rhodia, apenas porque era “muito feio”? Ou que sua relação com os sons é tão complexa porque é ‘praticamente’ cego? Ou que aprendeu a tocar sanfona sozinho na infância, pois ficava trancado em casa por ser albino, enquanto a família, sob sol escaldante, carpia na roça? De qualquer forma, nada disso tem relevância, pouco importa se são verdades ou exageros... A criação de toda personagem que assume caráter mítico passa por processos similares. Vamos à sua música.

Considero a discografia de Hermeto relativamente tímida: não chegam a 20 os discos que gravou como líder. Com certeza, deve ter centenas de partituras, anotações e ‘ideias’ prontas para serem captadas. Alguns de seus trabalhos mais significativos compõem o álbum “Zabumbê-bum-á”, gravado em 1979. Junto a seu antecessor, “Slaves Mass” (Missa dos Escravos, de 77), “Zabumbê-bum-á” apresenta um painel profundo do alcance da criação de Hermeto, que assina 8 das 9 faixas do álbum _a exceção é “Alexandre, Marcelo e Pablo”, do baterista Nenê_, que mostram o quanto seu som é difícil de ser catalogado. Destaco do conjunto duas faixas: “Rede” e “Suíte Paulistana”.


“Rede” tem a participação intensa de Zabelê (Rosemarie Pidner, que hoje é produtora, estando à frente da Veredas Produções, sediada em Minas Gerias), que faz voz, percussão e violão no álbum. A faixa começa exatamente com o canto-fala de Zabelê, que busca, com suas palavras, delimitar um espaço imagético para os ouvintes: natureza, passarinho, rede, verde, estão lá para compor um tempo de equilíbrio, de natureza “linda, ainda”. Porém, mesmo com esses signos em evidência, não enquadro “Rede” como uma música de teor “ecológico”: sua ‘mensagem’ está em outro lugar. É o onírico-bucólico-hedônico que a rege, é o tempo do sonho e não do discurso preservacionista, tão em voga, que conduz os sons. Tanto que os primeiros versos são: “Me dê a rede/Quero dormir”. E logo adiante: “Balance com força (...)/para o sono vir devagarinho”. A fala-canto de Zabelê se estende por pouco mais de 1 minuto, sendo substituída por um maior espaço instrumental, no qual o tema principal oscila dos teclados para a flauta até atingir seu ápice, na parte final, com o sax-barítono. Por meio de silabações, Zabelê retorna aos 2m30, mantendo-se por cerca de 1 minuto, quando a música, repentinamente, pauseia: os teclados vagueiam e uma voz masculina surge, preparando o terreno para a última parte, onde Zabelê reassume seu papel central, retomando os versos iniciais. Todavia, nessa entrada final (que começa aos 4m20), falará de forma mais rápida e desmembrada, aspirando sílabas e ressaltando a importância sonora e fonêmica, e não semântica, do que canta. Nesse ponto, não tenho dúvidas, um estrangeiro que não conheça o Português poderia aproveitar de forma mais intensa a música, pois decodificaria as palavras apenas como mais um bloco de sons a compor a passagem-paisagem, sem tentar entender o que é dito como, instintivamente, acabamos por fazer. É a partir desse 4m20 que a bateria acelera, ditando uma nova marcação rítmica, elevando o impacto do tema que acompanha os ouvintes, de instrumento em instrumento, durante toda a canção e rompendo o panorama letárgico, anunciado no início pelo embalar vagaroso da rede. Confesso que, normalmente, estou mais interessado nas construções instrumentais. Mas essa, mesmo com todas as suas vozes, é uma das minhas músicas favoritas.

“Suíte Paulistana” é outro ponto que merece maior atenção no álbum. Essa é uma faixa-solo, executada apenas por Hermeto Pascoal. Para mostrar que não é chamado de multi-instrumentista à toa, Hermeto toca aqui uma infinidade de instrumentos em estúdio, fazendo depois a mixagem/colagem necessária para compor a peça. Um mix de sopros e percussão serve de base à realização da música: sax tenor e soprano, flauta, apitos, mesa de cedro, tampa de cinzeiro, cinturão e bacia são os “instrumentos” que aparecem nos créditos. O resultado é uma peça de alto sabor “Art Ensemble of Chicago”: é incrível como que a mistura executada pelo músico ecoa sonoridades do clássico grupo free jazzista, hábil em compor painéis sonoros estruturados sobre percussão e sopros. Talvez essa seja uma das peças mais complexas de Hermeto, dada a riqueza alcançada com o produto final. Em 1999, Hermeto repetiu a experiência, mas de forma mais ampla: gravou um disco inteiro sozinho (“Eu e eles”), no qual toca uma infinidade de instrumentos e depois os mixa/cola em estúdio.
Isso é Hermeto. Quem não conhece o álbum, espero que aprecie...


A1 São Jorge 2:36
A2 Rede 6:27
A3 Pimenteira 6:27
A4 Suíte Paulistana 5:27
B1 Santo Antonio 4:07
B2 Alexandre, Marcelo E Pablo 5:16
B3 Suíte Norte, Sul, Leste, Oeste 3:55
B4 Susto 3:03
B5 Mestre Mara 4:38

*Hermeto Pascoal - piano, teclados, percussão, sopros, violão, clavinete, voz (e demais instrumentos da “Suíte Paulistana”)
*Zabelê - canto, palavras, improvisos, percussão e violão
*Cacau - flauta, sax tenor e sax barítono
*Jovino Santos Neto - teclado, clavinete e percussão
*Itiberê Zwarg - baixo
*Nenê - bateria, percussão e teclado
*Pernambuco - percussão
*Antônio Celso - guitarra e bandolim
**Pais de Hermeto: seu Pascoal (faixa 1) e dona Divina (faixa 5) - voz, histórias, improvisos**