Diálogos entre piano e sax

Dois dos instrumentos fundamentais no mundo do jazz, o saxofone e o piano, têm trajetórias e histórias bastante distintas. Ambos foram encampados pela música clássica, antes de o jazz surgir como gênero. Todavia, enquanto o piano logo se tornou um instrumento fundamental na esfera “clássica”, o saxofone sempre ocupou um papel marginal.

O piano surgiu mais de um século antes do sax. Tendo aparecido em Florença, em meados de 1710, o piano assumiu em algumas décadas papel central, de solista, na música erudita. Até mesmo J.S. Bach (1680-1750), compositor barroco que utilizou o órgão e o cravo na confecção de grande parte de sua excepcional obra, chegou a escrever concertos para piano no fim de sua vida. Na segunda metade do século XVIII, o piano já tinha consolidado seu perfil de instrumento-chave da música erudita, espaço que dividiria apenas com o violino.

O saxofone apareceu apenas em 1846, sendo invenção do belga Adolphe Sax. Até o fim do século XIX, o instrumento não havia sido devidamente incorporado à música erudita: vez ou outra, era escalado para alguma orquestra, mas, dentre as obras maiores que ficaram, não encontramos nem sonatas nem concertos escritos para saxofone. Tanto que as grandes orquestras do mundo não costumam, até hoje, ter um saxofonista em seu plantel fixo. A Osesp, por exemplo, conta com um amplo naipe de sopros (oboé, trompete, flauta, tuba, clarinete, trombone, fagote, trompa), mas nada de saxofone. A música erudita contemporânea buscou aproveitar um pouco mais o instrumento. Um dos primeiros radicais do século XX, Anton Webern, utilizou em seu Quarteto opus 22, de 1930, um conjunto formado por violino, clarinete, sax tenor e piano. Em décadas recentes, encontramos algumas peças mais, criadas por compositores como Xenakis e Sofia Gubaidulina _que compôs um belo duo para dois saxes-barítonos.

Mesmo no jazz, o sax levou um tempo para se firmar como instrumento de base. Seu papel cresceu em meio à ebulição das orquestras de swing e foi ganhar maior evidência durante a década de 30, brilhando nas mãos de figuras como Coleman Hawkins, Johnnny Hodges, Lester Young e Ben Webster. O curioso é que o patinho feio da música acabaria por se tornar um dos pilares do jazz, ao lado do onipresente piano. Qualquer listagem de qualquer estilo jazzístico moderno vai ter, sem muito esforço, um punhado de saxofonistas no topo, acompanhados, é claro, por pianistas.
Uma vez estando ambos no centro do mundo jazzístico, não faltaram oportunidades para se encontrarem: é longa a lista de duos de sax-piano. O formato já rendeu uma infinidade de grandes parcerias: Ornette Coleman/Joachim Kühn; Archie Shepp/Dollar Brand; Ivo Perelman/Borah Bergman; Ivo/Matthew Shipp; Keshavan Maslak/Paul Bley; Anthony Braxton/Georg Gräwe; Evan Parker/Shipp; Parker/Agusti Fernandez; Steve Lacy/Mal Waldron; Shepp/Horace Parlan; Lee Konitz/Dan Tepfer; Dave Burrell/David Murray; Sonny Simmons/Bobby Few; Braxton/Marilyn Crispell. Alguns desses encontros são fáceis de encontrar pela internet, outros estão em catálogo e podem ser adquiridos sem maior problema.

Em seu início free, Gato Barbieri topou pela Europa com o pianista Dollar Brand (Abdullah Ibrahim), sul-africano que desembarcou no continente em 62. Como o saxofonista argentino, Brand se envolveu mais com o free após se fixar na Europa. Em seus primeiros anos em solo europeu, seu primeiro “fã” foi o veterano Duke Ellington, que ajudou-o a gravar um disco com seu trio para o selo Reprise, em 63. Brand chegou a ‘substituir’ Duke em sua orquestra em algumas apresentações em 65. Ainda naquele ano, Dollar tocaria um período com o grupo de Elvin Jones, que havia deixado Coltrane, e se envolveria com Don Cherry, conhecendo logo Gato Barbieri. Do período em que trabalharam juntos, saiu este Hamba Khale, um duo de piano e sax-tenor _na edição alemã, o disco apareceu como “Confluence”. Gato me parece mais solto e livre que Brand. Em alguns momentos, o saxofonista chega a soar mais contido do que costumava ser no período, talvez como forma de manter a unidade do duo.





A1 The Aloe And The Wild Rose
A2 Hamba Khale
B1 To Elsa
B2 81st Street

Recorded: Milan August/September 1965





Duas décadas após o encontro de Hamba Khale, dois outros músicos se juntariam para explorar o formato duo de sax-piano.


Em 1984, no estúdio da Rádio Budapeste, Anthony Braxton e György Szabados gravaram quatro temas. Mais abstrato que o disco de Gato e Brand, este Szabraxtondos não está entre os álbuns mais difundidos de Braxton _dono de uma extensa discografia, que contempla os mais variados formatos. Foi produzido e lançado pelo selo húngaro 'Krém', o que deve ter dificultado e limitado sua difusão fora do leste europeu.
O pianista Szabados nasceu em 1939 na Hungria. Desde os 70s, comanda grupos de jazz em seu país, excursionando muito pela Europa. Em 98, lançou com Roscoe Mitchell “Revelation”. Em 2003, voltou a se juntar a Braxton, com quem gravou, acompanhados pelo percussionista Vladimir Tarasov, o disco "Triotone".




A1 Halott-Táncoltatás (Dance of Reanimation)
A2 Ajánlás Asszonyainknak (Commendation to Our Women)
B1 Kerserves (Lament)
B2 Szabraxtondos II

Recorded 29/06/1984. Debrecen Jazzdays ’84, Hungarian Radio Budapest


*Interessante notarmos a universdalidade desses dois instrumentos. Apenas nos dois álbuns destacados, encontramos músicos de Argentina, EUA, África do Sul e Hungria.