Pelo caminho espiritual de David S. Ware

A década de 90 concentra metade da discografia de David Spencer Ware, além de contar com seus trabalhos mais inspirados _como Dao, Earthquation e Cryptology. Como John Coltrane em seus últimos anos, David S. Ware considera seu trabalho musical como um desdobramento de sua espiritualidade. Como Trane, Ware não está ligado intimamente a um dogma religioso qualquer, mantendo uma visão abrangente do campo espiritual, amparada em estruturas orientais, especialmente indianas. Títulos de álbuns e músicas denunciam seu percurso: Shakti, Ganesh Sound, Crossing Samsara, Oblations and Blessings, Eternal Faces of Brahm...

Godspelized, álbum gravado em 96, capta bem esse processo. E não apenas pelo título, mas também pelos sons que oferece. Nada de exótico é ouvido aqui, nem de caricaturalmente devocional. Mas, com o sax, Ware elaborou um caminho de oração e recitação, de toadas mântricas, por meio do qual dialoga com as esferas superiores, nas quais crê, em busca de equilíbrio e transcendência. O título desse álbum (Godspelized) faz um trocadilho com “Gos’pelized” (instructed in the christian religion), apesar de a religiosidade de Ware pertencer à outra banda, na linha do professado por Alice Coltrane _nossa eterna Turiyasangitananda. O saxofonista explica que a relação que mantém com o instrumento que toca o realoca dentro das práticas de respiração (vitais à espiritualidade oriental) e redimensiona seu papel no universo. Interessante o que o músico diz sobre a única vez em que, ainda jovem, encontrou Coltrane:

“I met John Coltrane one time. I saw him a few times, but I only actually got to talk to him one time, and that was the time that he did Live at the Village Vanguard Again. I was at that recording. But Coltrane, just to encapsulate it, what he did for me was the idea of transcendence, using music as a vehicle for transcendence. John Coltrane crystallized this idea, this concept for me, using music as a vehicle for transcendence. That’s what Coltrane basically did for me”. ***

Godspelized apresenta o David S. Ware Quartet no pico de sua forma. Depois de muitos caminhos testados, em diversos álbuns, o grupo já havia adquirido o equilíbrio necessário a um conjunto de jazz: os músicos flutuam, dialogando um com o outro sem que as músicas tenham sido escritas ou ensaiadas passo-a-passo. A liberdade criacional espontânea pode falhar muitas vezes, especialmente quando os músicos não conseguem ajustar seus caminhos... Mas esse não é o caso do quarteto em questão: como ocorre com grupos fenomenais _citemos o quarteto de Coltrane e o quinteto de Miles nos 60s_, parece que deslizes e descompassos foram naturalmente abolidos (claro que falamos de free jazz, claro que as relações harmônicas são outras...).

Matthew Shipp é um dos pilares aqui. É difícil imaginar Godspelized sem o piano de Shipp. Em quase duas décadas ao lado de Ware, seu dedilhado tornou-se essencial ao trabalho do saxofonista, sendo muitas vezes um contraponto a seus êxtases dissonantes, como podemos notar aqui _ouçam a faixa Eternal Faces of Brahm e sintam isso. Basta testemunhar a falta que fez em Shakti _último álbum de Ware, lançado neste ano, do qual Shipp não participou. Na percussão, Susie Ibarra, com seu toque multitonal profundo e delicado, se mostra vital à concepção dessa obra. No baixo, claro, o mais antigo parceiro de Mr. Ware, William Parker.



1 Godspelized 15:44
2 Wisdomsphere 7:55
3 Inner Temple 6:40
4 Wisdom Through Time 7:54
5 The Stargazers 12:26
6 Eternal Faces of Brahm 11:44
7 Godspelized 4:20




*David S. Ware: tenor
*Matthew Shipp: piano
*William Parker: bass
*Susie Ibarra: drums


Recording Date: 2,3/may, 1996.


***Nesse link é possível ver a entrevista completa:
http://www.wnur.org/jazz/artists/ware.david/interview.html