A lenda Kaoru Abe


Kaoru Abe não chegou a viver 30 anos. Morreu em setembro de 1978. Overdose de heroína. Fora dos circuitos free music o nome do saxofonista japonês não tem muita ressonância, infelizmente. Como tantos que optaram pelas fronteiras criativas mais radicais, Abe poderia já estar esquecido. Sorte que não faltaram registros de sua prolífica produção, sorte que possamos ouvi-lo ainda hoje.
Nascido em maio de 1949, em Kawasaki, Kaoru Abe apareceu na cena musical underground japonesa no começo dos 70 e, antes da década acabar, deixou material para estampar ao menos umas duas dezenas de discos: muitos solos, alguns duos e trios, parcerias com o baterista Sabu Toyozumi e os guitarristas Masayuki Takanayagi e Derek Bailey. O sax alto foi seu principal instrumento, mas fez incursões pelo clarinete, soprano, piano, além de experimentar a gaita.
O misto de morte trágica e prematura com sons intensos e incomuns rapidamente fizeram de Kaoru Abe uma lenda, não apenas no Japão. Seu som explosivo e vigoroso não faz concessões. E mesmo em seus últimos anos de vida, quando adotou um sopro um pouco mais lírico, não deixou de incomodar os ouvidos mais preguiçosos. Para quem não conhece a cena free improv japonesa, a música de Abe será uma descoberta.

Curiosa a preferência do músico por gravações e apresentações solos. Não faltam exemplos de solos documentados por saxofonistas: Anthony Braxton, Brotzmann, Evan Parker, Charles Gayle, Mats Gustafsson, todos experimentaram o formato. Mas Abe fez dessa estrutura um sistema próprio e é aí que se concentra seu principal legado. O saxofonista chegou a gravar um álbum chamado “Partitas” _título que brinca com as partitas para violino solo de J.S. Bach e (porque não?) dá uma aura mais séria à sua criação. Essa face do trabalho de Abe foi enriquecida com um poderoso documento: a caixa “Live at Gaya”, lançada postumamente em 91, traz Abe em apresentações solo em julho de 78, dois meses antes de sua morte, em um total de 10 cds!

Um de seus materiais free mais ricos pode ser conferido neste Mokuyoubi no yoru (Thursday Evening). Gravação de 13 de julho de 1972, traz Abe acompanhado apenas de sax alto em três longas improvisações. O disco inicia com alguns segundos silenciosos, até que Abe interfira testando algumas notas, preparando os ouvintes para o ruidoso conflito auditivo que tomará o espaço dali para frente. As cascatas sonoras que formam a segunda faixa são arrepiantes: a forma como seu sopro desesperado reverbera: não apenas técnica, mas muita emoção sustenta seu discurso. E se a emoção sozinha é cega e improdutiva, nas mãos de personagens como Abe se torna fonte propulsora de novas linguagens, de campos raros. Difícil sair passivo de uma audição proporcionada pelo músico japonês.




Paralelos entre o free jazz e o expressionismo abstrato não são novos. Quando Ornette Coleman colocou na capa de seu seminal disco “Free Jazz”, de 60, uma reprodução de uma obra de Jackson Pollock avisou que os caminhos visual e sonoro radicais encontravam ali um ponto de bifurcação. Quando ouvimos o saxofonista japonês, essa relação parece ainda mais óbvia: Kaoru Abe: um músico expressionista-abstrato?