Charles Gayle: o palhaço melancólico


Enquadrar Charles Gayle na máscara de gênio artístico maldito e incompreendido seria uma atitude muito limitadora. Gayle é outro caso e esses clichês não dão conta da importância de seu trabalho. Basta ouvi-lo. Nascido em 1939, apenas apareceu para o mundo musical na década de 80. Antes disso, foram ao menos (ele nunca explicou ao certo) uns 15 anos vivendo pelas ruas de Manhattan. Andarilho, sem teto, dormindo em construções abandonadas, tocando nas ruas e nas estações de metrô. Gayle gravaria seus primeiros discos somente em 1988 _quando tinha 49 anos! Em uma semana gestou com seu sax tenor três rebentos de uma vez: Always Born, Homeless e Spirits Before. E a oportunidade surgiu apenas porquê uma fita com uma apresentação sua caiu nas mãos do pessoal da gravadora sueca Silkheart, que acabou por convocar o saxofonista para entrar em estúdio. Nessa época, foi convidado para uma temporada no “Knitting Factory”, onde seu nome ecoou e começou a ser difundido. Dizia Gayle: “All of my music is completely spontaneous. I plan nothing and say nothing to the musicians. What I play has to do with power, my father was a steelworker”. Nessas duas décadas, Gayle produziu mais de 30 álbuns e mostrou sua pegada também na viola, no clarinete-baixo e no piano (instrumento com o qual chegou a gravar alguns álbuns solo). Diferente de seu ácido sopro, com o qual gosta de experimentar os registros mais agudos do tenor, na melhor linha ayleriana, o piano de Gayle é sutil e bem mais melódico. Seu piano não é tão free e agressivo, não segue os caminhos sedimentados pelo pioneiro Cecil Taylor. Ouvindo seu dedilhado é mais fácil nos remetermos ao universo anterior ao bebop, resvalando até no stride, por sons de Fats Waler e Bud Powell.

Nas raras entrevistas que concede, Gayle costuma ser evasivo quando perguntado sobre o período anterior aos 80s. Conta casos isolados e fala da importância de ter descoberto deus para aguentar os períodos mais sombrios. Se seu som não tem nada que denuncie a devoção que afirma o mover, os títulos de muitas de suas composições costumam remeter ao universo do sagrado: Psalm Prayer, Holy Servant, Glorious Saints, Sanctification... Gayle diz que circulou pelos lofts que formavam a cena free na década de 70, que participou de gigs com Rashied Ali, Sam Rivers e Archie Shepp, mas ninguém nunca confirmou nada. Verdade ou delírio, é curioso ouvir os primeiros discos do saxofonista e encontrar um músico já formado, com uma sonoridade própria, com marcas de alguém que muito experimentou. Gayle acaba por ser um dos últimos elos entre o free clássico dos 60s e o som livre atual _mesmo que haja documentação de seu som apenas a partir dos 80s.

Uma faceta curiosa da criativa palheta do artista Gayle é o personagem “Streets, the clown”. Raras nos últimos tempos, as aparições de Streets acompanham o saxofonista desde seus tempos de andarilho. Streets surge com Gayle maquiado, de chapéu coco, nariz de palhaço e luvas brancas. Nessas aparições, geralmente não-programadas, o músico costuma vir acompanhado de trompete e sax de plástico, faz pantomima e discursa, incomoda e desagrada muita gente. Quem for ver o Gayle sax-free e se deparar com Streets, possivelmente não irá ficar muito satisfeito... “O Streets é um personagem que me permite explorar diferentes abordagens. Através dele consigo criar uma espécie de pantomima nas várias situações e questões da vida. De vez em quando necessito recorrer ao Streets... às vezes a música não é suficiente para me expressar... Através do Streets consigo obter uma grande liberdade interior, que me permite participar de maneira mais clara e direta sobre a vida”, explica Gayle.

Gayle é um músico dono de uma sonoridade única. As gravações ao vivo permitem escutar esse músico em meio à liberdade total necessária para dilatar e explorar ao extremo seus solos, marcados por grunhidos e ruídos agudos e angustiados perdidos em longas divagações. Repent, gravado ao vivo em janeiro de 92, traz o saxofonista acompanhado de baixo e bateria em duas extensas composições: Repent (23:43) e Jesus Christ And Scripture (50:36). A audição desse álbum representa um instigante adentramento no universo de Gayle. Altamente recomendado.


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*Charles Gayle: tenor
*Vattel Cherry, Hilliard Greene: bass
*David Pleasant: drums

Recorded on 1/13/92 and 3/2/92 at the Knitting Factory.