LANÇAMENTOs Novos álbuns de diferentes partes do mundo.
Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os
discos...
Por Fabricio Vieira
Diálogos ****(*)
Paula Shocron/ Pablo Díaz/ Guillermo Gregorio
Fundacja Sluchaj
Este encontro de gerações da free music argentina reuniu o pioneiro
saxofonista e clarinetista Guillermo Gregorio, 75 anos, a dois dos mais
destacados nomes do país hoje, Paula Shocron (piano) e Pablo Díaz (percussão).
Gregorio vive nos Estados Unidos, onde foi registrado este álbum, há décadas,
sendo um nome que ganhou maior projeção na cena internacional a partir dos anos
90, época em que gravou com figuras como Mat Maneri, Jim O'Rourke e Mats
Gustafsson. As 14 peças que compõem o álbum se sucedem como continuações,
partes de um todo divididas em segmentos com alguns – "Diálogos",
"Micromatismos" e "Aria" - tendo mais de uma sequência,
sendo uma sessão de improvisação livre de grande inventividade expressiva.
Shocron e Gregorio encontraram bem a química para dialogarem com precisão e de
forma complementar, com resultado especialmente brilhante na série
"Diálogos", que marca os temas mais potentes do registro. Em
"Diálogos n.1", por exemplo, ela cria uma linha de piano atordoante,
que nasce por entre as notas iniciais emanadas pelo clarinete e, entre entradas
e saídas, teclas e sopro vão construindo uma inquietante atmosfera, com a
percussão detalhista ao fundo, discreta para não atrapalhá-los. "Dialogos
n.3" começa com um tema ao piano de aura jazzística que parece não
conseguir (ou não querer) se desenvolver e se revelar de todo, girando em torno
de um núcleo, sendo logo atravessado pelo solo de clarinete (talvez o mais
potente de Gregorio no disco) e a percussão que vai crescendo em sintonia com o
sopro. Uma versão mais robusta da sonoridade do trio marca "Diálogos
n.5", com piano e sopro em intensidade profunda. Afora ser um encontro
histórico, Diálogos é um álbum de muita potência criativa. (Uma curiosidade sobre a universalização
da free music: temos um trio de argentinos, gravando em Nova York, sendo lançados por
um selo polonês e resenhados no Brasil).
New York Trio ****(*)
Angelika Niescier/ Tordini/ Cleaver/ Finlayson
Intakt Records
A saxofonista alemã Angelika Niescier reúne aqui um potente trio (Christoffer Tordini e Gerald Cleaver) ao qual adiciona nada menos que Jonathan Finlayson,
um dos grandes do trompete atual. Niescier é um caso interessante daqueles
músicos que demoram mais para se destacar e construir uma obra própria, sendo
que está em seu auge neste momento, tanto no que se refere a maturidade
estética quanto a grupos de destaque que conduz. Mantendo uma ponte entre
Europa e Estados Unidos, tem podido realizar projetos como este New York Trio. "The
Surge" já abre o disco com tudo, de forma envolvente, com sax alto e
trompete em diálogo explosivo sendo arrastado pelo pulso preciso de Cleaver.
"Cold Epiphany" já leva o ouvinte a uma outra vibração, algo mais
centrado e relaxado, mostrando a variedade das ideias da saxofonista e seu
trio. Para sentir a força solista de Niescier, nada melhor que a vibrante
"...ish". Já em "Push/ Pull", é a vez de Finlayson mostrar
sua voz de forma mais destacada. Angelika Niescier tocará pela primeira vez no
Brasil em setembro. Imperdível.
Stone ****
Satoko Fujii
Libra Records
Após editar uma sequência de quase um disco por mês em 2018, como parte
da celebração de seus 60 anos de idade, a pianista japonesa Satoko Fujii deu
uma pausa; agora retorna aos lançamentos com este Stone. O álbum vem ampliar sua
rica discografia solista, que vai se sedimentando como uma das mais importantes
no formato neste século. Gravado em duas sessões, em setembro e dezembro de
2018, no Samurai Hotel (NY), o disco traz 15 temas, com Fujii mostrando a
amplitude de sua particular linguagem. Apoiada em técnicas expandidas, a
instrumentista explora o universo sonoro total oferecido pelo piano. Quem
conhece outros trabalhos seus, já se deparou com o uso que faz das cordas,
tirando sonoridades metálicas que podem soar como cascatas desabando (como
vemos em "Piemontite Schist") . “Obsius” abre o disco com a música
vindo do fundo, com ruídos e notas esparsas que os ouvidos fazem força para
captar, efeito que se repete em "Sand Stone" e nos primeiros minutos
de "Lava", antes de um tema começar a se revelar. Stone é um
intrigante trabalho de Fujii, de audição que requer atenção redobrada para
poder captar suas nuances inventivas.
Last Works ***(*)
Tom Pierson Orchestra
Auteur
Terra Incognita ****
Rich Haley
Pine Eagle Records
Rich Haley é um saxofonista que podemos chamar de discreto. Nascido em
1947, lançou seu primeiro álbum, “Multnomah Rhythms”, apenas em 1983. Desde
então construiu uma discografia com cerca de 20 títulos, que tem crescido mais
rapidamente nos anos 2000, tendo tocado com gente como Bobby Bradford, Vinny
Golia e Nels Cline. Nos anos 90, participou de um projeto, o Jack’s Headlights,
do qual fazia parte o baixista Michael Bisio. E é daí que deve vir o elo com
seu novo título: em Terra Incognita, o saxofonista se une a Bisio, Matthew
Shipp e Newman Taylor Baker (ou seja, ao trio do pianista), em um encontro
inédito que resultou em material sonoramente bastante interessante. O free jazz
apresentado nas seis faixas do álbum, captadas em agosto de 2018 no Parkwest
Studios (Brooklyn, NY), soa vigoroso sem ser explosivo, com o sax-tenorista de
Portland tendo uma atmosfera pós-bop rondando sua pegada, o que funciona de
forma bem estimulante. Isso fica bastante caracterizado em faixas como
"Forager", marcada por um tema conduzido pelo sax tenor quase
cantarolável. "Centripetal" já é mais enérgica, com solos de sax e
piano em voltagem maior, ofertando um dos melhores momentos do conjunto. Para fechar o álbum, a longa "The
Journey", com seus mais de 17 minutos, funciona como uma síntese do que o registro apresenta.
Live/ShapeShifter *****
William Parker/ In Order to Survive
AUM Fidelity
Projeto criado pelo baixista e compositor William Parker na década de
1990, o quarteto In Order to Survive esteve em hibernação por muito tempo,
retornando em 2012 para uma apresentação no Vision Festival e se reunindo
esporadicamente desde então. Agora lança este incrível álbum duplo, captado ao
vivo em duas noites no ShapeShifter Lab, no Brooklyn (NY), em julho de 2017. Na
formação original, apenas uma mudança nas baquetas, com a troca de Susie Ibarra
por Hamid Drake (gênio por gênio...). Rob Brown (sax alto) e Cooper-Moore
(piano) permanecem firmes. E a música, sensacional. O CD 1 traz a suíte
“Eternal is The Voice of Love”, em cinco partes e cerca de 50 minutos de
música. O CD 2 traz outros cinco temas, sendo um deles um duo (“Drum & Bass
Interlude”) de Parker e Drake. “Eternal is The Voice of Love” começa de forma
lenta com piano e baixo soltando espaçadas notas, enquanto a percussão vai
surgindo em toques sutis; o sax entra com uma melodia quase suave antes do
primeiro minuto, indo e vindo enquanto o ritmo vai ganhando corpo; antes dos
três minutos, a intensidade já está elevada e os ouvidos embebidos pela força
do quarteto. A “part II” chega com o sax em primeiro plano, antes de abrir
espaço para o solo algo swingante de Cooper-Moore. Já em “part IV” é a vez
de Brown mostrar solo de grande inventividade, acompanhado por linhas
desconcertantes do piano. O CD 2 abre com a saborosa “Demons Lining the Halls
of Justice”, que traz algo pós-bop bem ao estilo do Quartet de Parker, com o
sax alto cantando (e sendo respondido pelas teclas) o tema central. Há ainda
uma releitura do tema “In Order to Survive”, conhecido por quem acompanha o
trabalho do grupo. Afinadíssimo, o In Order to Survive mantém a força e a
relevância de seus tempos áureos e sempre é incrível poder ouvir
instrumentistas desse porte criando música de tal qualidade.
Sult ****
Maja S. K. Ratkje
Rune Grammofon
A artista norueguesa Maja S. K. Ratkje é uma das vozes mais
inquietantes da cena experimental. Tendo o principal de sua criação
desenvolvida por meio de voz e eletrônicos, tem gravado com nomes como Ikue
Mori e Sylvie Courvoisier – mas é seu trabalho solista que tem feito muito de
sua fama. Em Sult, Ratkje apresenta nove peças registradas no Norwegian
National Opera and Ballet, em maio de 2018. Originalmente, Sult foi
desenvolvido como trilha sonora para um balé que, por sua vez, nasceu de uma
adaptação de um romance de mesmo nome. Utilizando um órgão modificado e seus
hipnóticos cantos, Ratkje desenvolveu um trabalho que sobrevive muito bem sem
estar ligado ao projeto do qual fez inicialmente parte. Sombria por vezes,
etérea, inebriante até, a música de Sult deixa os sentidos anestesiados, com a
atmosfera se mantendo suspensa longamente após o disco acabar. A climática
introdução de cinco minutos (“Introduksjon – Denne Forunderlige By”) nos coloca
no universo único que ocupará nossa escuta pelos seguintes pouco mais de 30
minutos. “Den Spraettende Bevaegelse Min Fot...” traz um alucinado órgão,
enquanto a voz flutua ao fundo e por entre as notas. Já em “Jeg Fornemmer Mine
Sko...”, o órgão soa quase fantasmagórico, antes de uma brusca virada lá pelo
meio da faixa. Publicado em edição limitada em vinil, 500 cópias, acompanhado de um CD.
The Tao Quartets *****
Whit Dickey
AUM Fidelity
O baterista Whit Dickey é um daqueles artistas que merecia um
destaque maior na memória dos entusiastas da free music. Não que ele seja pouco
conhecido, mas sua refinada arte percussiva o coloca entre os grandes do
instrumento, especialmente pelo seu trabalho a partir dos anos 90 com nomes
como David S. Ware, Matthew Shipp e Joe Morris. Ainda naquela década, passou a
comandar seus próprios grupos. E agora atinge um de seus ápices criativos. The
Tao Quartets é um álbum duplo, com Dickey liderando dois grupos distintos. O
material começou a ser registrado no inverno de 2018, diz o release sem apontar
uma data exata, ou seja, é trabalho realmente novo. O primeiro CD, “Peace
Planet”, traz um quarteto formado por Dickey, Matthew Shipp (piano), William
Parker (baixo) e Rob Brown (sax alto), todos parceiros de longa data. São cinco
faixas em que vemos a música fluir de forma equilibrada e profunda. “Suite for
DSW” é uma homenagem a um antigo fundamental parceiro na trajetória deles:
Dickey, Shipp e Parker tocaram juntos no quarteto de David S. Ware entre 93 e
96, no que foi um dos mais emblemáticos grupos do período. No segundo CD,
"Box of Light", metade da escalação é alterada: saem Parker e Shipp,
entram Michael Bisio (baixo) e Steve Swell (trombone). Com dois sopros, a
dinâmica harmônica do quarteto muda sensivelmente. "Eye Opener" já
abre esta segunda parte com a energia redobrada, com sax alto e trombone em um
furioso diálogo. Aqui são outros seis temas, com a temperatura ameaçando baixar
um pouco apenas na primeira metade da faixa-título, isso antes de bateria e baixo
assumirem o protagonismo (destaque para o fulminante solo com arco de Bisio).
Como sugere o título The Tao Quartets, a ideia é ofertar dois
opostos complementares, yin e yang, duas possibilidades de trabalhar a música
livre partindo das composições de Dickey. Fantástica experiência.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)