LANÇAMENTOS Selecionamos um pouco
do que vem saindo na atual cena da Argentina, alguns títulos lançados
nos últimos tempos que merecem ser descobertos e apreciados...
Por Fabricio Vieira
Gato Barbieri Revisitado ****
Ledesma/ Angelillo/ Hurtado/ Brandán
Independente
Mesmo tendo sido, em dado momento de sua trajetória, seduzido pelo mainstream, o saxofonista argentino Gato Barbieri (1932-2016) é um nome de inegável importância na música criativa dos anos 60 e 70. É esse seu melhor que é revisitado neste álbum, registrado pelos também argentinos Pablo Ledesma (saxes alto e soprano), Pepe Angelillo (piano), Mono Hurtado (baixo) e Carto Brandán (bateria) em setembro de 2017. São oito temas, sendo metade de Barbieri, entre outros feitos pelo quarteto em sintonia com sua obra. Interessante que de Barbieri temos duas peças escritas para filmes, “La Guerra del Cerdo” e “O Último Tango em Paris”, com seu poder imagético amplificado pela liberdade improvisativa do quarteto – Ledesma está especialmente provocante no primeiro tema.
Surtectura ****
Cecilia Quinteros / Marcelo von Schultz
Independente
O violoncelo tem fortalecido seu espaço na música livre neste século. E
a argentina Cecilia Quinteros é um dos nomes que vai se destacando trabalho
após trabalho. Ao lado do baterista Marcelo von Schultz, seu parceiro também no
empolgante trio Haití, Quinteros apresenta aqui quatro temas de muita
vitalidade improvisativa. O registro foi realizado em fevereiro de 2018, na
Parroquia Santa María de Guadalupe, em Moreno – espaço concebido pelo arquiteto
Claudio Caveri nos anos 60. Possivelmente, para quem conhece o lugar ou, melhor
ainda seria, pôde vê-los tocando lá, essa relação entre arquitetura e sons
fique mais palpável (lembremos que o título do álbum, Surtectura, é um termo
criado por Caveri para designar, segundo palavras de Schultz, “una mirada desde
aquí, desde el sur, de la arquitectura y del diseño”). O tema de abertura,
“Escuchar desde aquí”, parece fazer uma conexão temática com Caveri: do hemisfério
sul, um aceno aos centros da música livre, mas com uma voz própria, uma
particular forma de abordar esse universo criativo.
Soledades Permanentes ****(*)
Ensamble Kuai
Kuai Music
Aqui temos uma belíssima revisitação ao clássico “Bronca Buenos Aires”.
Composta originalmente por Jorge López Ruiz e lançada no início dos anos 70, a
peça vai completar cinco décadas e segue muito atual, temática e sonoramente.
Esta versão do Ensamble Kuai – grupo formado com nomes representativos da cena
atual da Argentina ligados ao selo Kuai Music – funciona como um “espejo
extraño de su contraparte original”, como diz a nota de apresentação do disco.
Em outras palavras, não é uma versão direta, mas uma espécie de metaobra, que
desconstrói e recria a obra homenageada. Como em “Bronca Buenos Aires”,
trata-se de uma narrativa orquestrada, com solos marcantes pontuais, dividida
em quatro partes (mais uma introdução aqui). Os títulos das partes
da nova peça (“Rumor de Muerte”, “Relatar el Mundo”, “Un Sueño Casual”...) são
trechos da narrativa da obra dos anos 70. Aliás, sentimos falta do narrador
marcante do original, mas há momentos que de fato nos remetem à peça de Ruiz,
como na entrada explosiva de “Murmullos”, o último movimento. O grupo é formado
por 12 artistas: Lucas Goicoechea, Emmanuel Famin, Juani Méndez, Pablo Moser e
Sebastián Mazzalupo (saxes); Jazmín Prodan (voz); Sebastián Greschuk
(trompete); Nataniel Edelman (piano); Damien Poots (guitarra); Juan Bayon
(baixo), Andrés Elstein (bateria) e Fran Cossavella (percussão). Interessante sonoramente
que aqui os saxes estejam multiplicados, dominando a linha de sopros, enquanto no original
víamos uma presença ampla de trompetes e trombones. Além de apresentar um pouco
do que de melhor a cena do país tem feito atualmente, Soledades Permanentes é
ainda um convite irresistível para reencontrar “Bronca Buenos Aires”.
Pequeñas Explosiones Hermanas
****
Salgado y Asociados
Independente
O trombonista Francisco Salgado foi uma importante voz na cena argentina
contemporânea. Conhecemos seu trabalho primeiramente por meio do Underground
Mafia, um interessante grupo (trio depois quarteto) surgido cerca de uma década atrás. Falecido
neste ano, o trombonista deixou este último testemunho, realizado com outro
projeto seu, o Salgado Y Asociados. Ao lado de Pablo Moser (saxes barítono e
soprano), Hernán Sama (tenor e soprano), Guillermo Roldán (baixo), Marcelo
Jusid (guitarra), Javier Garcia Atencio (bateria) e Julia Sanjurjo (voz),
Salgado realizou esta gravação derradeira, agora editada, em agosto do ano
passado. São oito temas em que vemos uma inventiva exploração jazzística aberta a elementos múltiplos, por vezes complexos. Um bom exemplo é a primeira
extensa peça, “Gil Jopo...”, que abre com um ar bluesy, que depois se desdobra
em outras vias conduzidas por inquietos sopros, seguidos por voz, pulsante
bateria, solo de trombone e por aí vai – aliás, o tempero blues aparece em
diferentes momentos, com a harmônica, tocada por Salgado, em destaque em
oportunidades diversas. “Una palabra” vem a seguir com outra proposta,
vocalizações em meio a uma música mais pontual, com saxes e trombone entrando e
saindo, jogando lindamente com a voz de Julia Sanjurjo. “Ustedes Tres” é outro
momento de força do álbum, com o sax barítono de Moser em evidência, ditando o
clima denso que abre e encerra a faixa. A última peça, “Ellas hablan de Amor”,
foi também escrita por Salgado, mas não chegou a ser gravada por ele; aqui
aparece em versão ao vivo, homenagem final feita pelo grupo.
Towards the Colliding Point
***(*)
Duende
Nendo Dango
Reunindo o saxofonista Miguel Crozzoli e o guitarrista Gonzalo Muruaga,
o duo Duende apresenta este seu registro captado em Dublin, Irlanda (para onde
Crozzoli mudou uns anos atrás). O álbum abre de forma contemplativa, com uma
melancólica melodia do sax, à qual as cordas respondem esparsamente. Esse tom
mais plácido se altera um pouco com a entrada na sequência de “The beat of the
fire rises beyond”, com o sopro já mais arisco e certa aspereza no diálogo com
a guitarra. Nesse trajeto, encontramos a interessantíssima “Then, nothing comes
and nothing goes”, que coloca Muruaga em primeiro plano, com a guitarra
ampliando sua exploração de efeitos e sendo atacada pelo sopro apenas passada a
metade da peça. Além dos saxes, Crozzoli explora pontualmente para alguns
efeitos a flauta cubana. Não se sabe há quanto tempo a dupla toca junto ou se
aqui vemos um encontro esporádico, mas em alguns momentos parece faltar aquela
liga fina que ilumina os encontros de improvisação livre. De qualquer forma, um
trabalho que vale ser conhecido.
Vidas Simples ****
Juan Bayon
Ears&eyes Records
O baixista Juan Bayon tem editado sólidas criações jazzísticas nesta
sua trajetória de pouco mais de uma década. Comandando neste novo título, seu
terceiro trabalho autoral, um quinteto – Lucas Goicoechea (sax alto), Diego
Urbano (vibrafone), Santiago Leibson (piano) e Sergio Verdinelli (bateria) –,
Bayon apresenta sete temas de sua autoria. O disco abre com o mais
extenso tema, “Cumbia de Gambartes”, que apresenta bem a sonoridade do quinteto, com
suas frases melódicas circulares, com o piano desempenhando papel vital e
dialogando bravamente com o sax, em esquema que ressurge em outros momentos do
registro. A variação de modos no decorrer do disco é muito bem equilibrada,
sempre mantendo a unidade da obra. Em “Rupturas” – segundo o músico, escrita
quando estava se separando –, encontramos, por exemplo, o mais potente solo de
sax do conjunto. Já em “Aural” nos é oferecida uma balada bastante delicada,
com piano e sax em destaque. O álbum é entrecortado por dois pequenos
temas-improvisos que funcionam como intermezzo; há “Pausa”, conduzida apenas
pelo piano, e “Ego”, um solo de baixo, que mostra um relance das habilidades de
Bayon (infelizmente dura apenas dois minutos). “Fortaleza” encerra o álbum com
muita propriedade; em sua interessante estrutura, primeiro vem a bateria
sozinha, em pulsação radiante que se manterá por toda a peça; o baixo logo fará
companhia às baquetas, seguidos por piano e depois pelo sax, com os dois
jogando com um breve repetitivo tema; somente aí chega o vibrafone, com o
quinteto mostrando todo seu entrosamento.
Geograficciones ****(*)
Conde/ Shocron/ Quinteros/ Drury/ Díaz
Nendo Dango/ Different Track
Geograficciones reúne alguns dos mais interessantes artistas da cena
atual de Buenos Aires. Estão aqui agrupados Paula Shocron (piano), Luís Conde
(sax alto e clarinete), Cecilia Quinteros (violoncelo) e Pablo Díaz
(percussão); para complementar o quinteto, a eles se juntou o baterista
norte-americano Andrew Drury. O encontro aconteceu em setembro de 2017, no
Estudio Libres (BsAs) e rendeu oito temas. O disco abre com "Now", com
percussão e piano em primeiro plano, com toques de intensidade acumulativa, que
recebem o clarinete passados alguns minutos, adentrando um campo de ruidosidades
conflitantemente bem conduzidas, que quase resvalam algo melódico lá pelo meio
da peça, com a potência baixando apenas nos minutos finais – uma introdução e
tanto ao som do quinteto. À sequência, "I" traz os músicos mais
contidos, em gestos mais pontuais, dentre os quais ganha maior destaque o
violoncelo. Em "Ren", a dinâmica de seus últimos dois minutos é seu
ponto luminoso: de uma massa ruidosa, emerge sax e piano em diálogo jazzístico,
para encerrar com um breve lírico solo de Shocron. O abstracionismo de
"Sur", que tem o piano como protagonista, é outro destaque. O
trabalho fecha de forma contundente, com a brevíssima e áspera "KO".
Geograficciones, um dos destaques do ano, acaba de ser oficialmente lançado.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)