Free Jazz: documentando a cena (II)






DOCs  Selecionamos 15 diferentes documentários que abordam músicos da cena free jazzística, filmes que focam apenas um artista por vez, com alguns dos principais nomes dessa seara, como Cecil Taylor, John Zorn, Sunny Murray, Peter Brötzmann...






Por Fabricio Vieira


Afora os documentários que buscam registrar a cena, que destacamos anteriormente, há muitos filmes dedicados a um artista específico. Alguns dos personagens principais dessa cena já foram retratados, e bom que a maioria deles enquanto ainda estavam vivos. Selecionamos aqui 15 desses documentários, retratos que ajudam a conhecer melhor cada um dos artistas destacados. Infelizmente no Netflix não há nenhum desses filmes (na plataforma você encontra alguns bons docs, como “Chasing Trane” e “I Called Him Morgan”, mas fica por aí). São filmes realizados em diferentes formatos e países, boa parte deles editados em DVD, alguns disponíveis na íntegra no Youtube, Vimeo ou Dailymotion, mas dificilmente com legendas em português. Alguns colocaremos inteiros abaixo, outros apenas o trailer, outros ainda um link para ver em algum lugar. Free The Jazz!





BRÖTZMANN” (2011)
Dir.: René Jeuckens, Thomas Mau, Grischa Windus

O saxofonista alemão Peter Brötzmann já foi retratado em alguns filmes, como "Soldier of the Road" (2012) e "Rohschnitt Peter Broetzmann" (2014). Mas nenhum é tão íntimo quanto este documentário. Os diretores alemães que assinam o filme acompanharam o saxofonista em uma turnê europeia que comemorava seus 70 anos de idade. Junto a Brötzmann estava o Chicago Tentet, um time estelar com instrumentistas de diferentes gerações (Mats Gustafsson, Joe McPhee, Ken Vandermark, Johannes Bauer, Paal Nilssen-Love e outros). Todos eles dão algum depoimento, falando como conheceram Brötzmann, mas o charme especial do filme está nas conversas com o próprio saxofonista. Brötzmann é filmado em diferentes oportunidades em sua (relativamente modesta) casa em Wuppertal, criando suas xilogravuras, fazendo café, ou andando pelo bairro, indo à feira. São essas conversas íntimas, mais do que os depoimentos dos outros ou trechos de shows da turnê, que fazem deste um filme imperdível. Disponível em DVD.    






SUN RA: A JOYFUL NOISE” (1980)
Dir.: Robert Mugge

Há outros documentários sobre Sun Ra (1914-1993), como "Mistery, Mr Ra" e "Brother from Another Planet" . Mas este A Joyful Noise encontrou o tom perfeito para abordar a obra deste que foi um dos artistas mais vibrantes da segunda metade do século XX. O diretor Robert Mugge acompanhou durante dois anos Sun Ra e sua Arkestra, a partir de 1978, para fazer este documentário, que se estrutura baseado em imagens e depoimentos coletados nesse período. Partindo de Germantown (Filadélfia), onde ficava o QG da Sun Ra Arkestra à época, o filme traz também imagens de apresentações em Washington e Baltimore. Não se trata de um doc biográfico, mas de um retrato de Sun Ra e sua Arkestra, que tinha então uma de suas formações mais fortes, com John Gilmore, Marshall Allen, Danny Ray Thompson, Eloe Omoe e June Tyson (que abre os trabalhos cantando a clássica "Astro Black"). O filme inicia com Sun Ra em meio a artefatos egípicios no museu da Universidade da Pensilvânia, falando sobre sua arte e a importância do "poder criativo que vem do espaço sideral". Uma viagem estético-sonora pelo universo de Ra. Disponível em DVD.






ALL THE NOTES: A Portrait of Cecil Taylor” (2005)
Dir.: Christopher Felver

Cecil Taylor (1929-2018) já tinha cinco décadas de carreira quando protagonizou este belo documentário. O experiente Christopher Felver achou o tom ideal para abordar a obra de um dos artistas fundamentais da música (qualquer que seja ela). Taylor não é retratado aqui sob uma perspectiva biográfica. A proposta do filme é apresentar sua arte, mais do que sua vida. Para isso, o diretor faz Taylor falar diretamente com o público, respondendo questões sobre temas como composição e sua particular forma de notação musical, olhando sempre para a câmera, como se conversasse conosco. Suas falas são intercaladas com trechos de apresentações; sua música ajuda a corporificar suas palavras. Taylor nos apresenta sua rotina, o ato de ainda praticar após uma longa vida dedicada ao piano. E a seu próprio testemunho são adicionados entrevistas e trechos de apresentações ao lado de artistas próximos a ele, como Elvin Jones, Billy Bang e Derek Bailey. Lançado em DVD em 2011.






ARCHIE SHEPP: Je suis jazz, c’est ma vie...” (1984)
Dir.: Frank Cassenti

Saboroso doc focando uma passagem do mestre Archie Shepp por Paris no fim de 1983. Entre ensaios para uma temporada no Right Bank Club – com um grupo que contava com Siegfried Kesller (piano), Wilbur Little (baixo) e Clifford Jarris (bateria) –, o diretor conversa com Shepp sobre temas variados ligados à sua música. Logo nas primeiras cenas, quando o diretor o interpela dizendo que queria fazer um documentário sobre jazz com ele como protagonista, Shepp diz: “I don’t much like that word: Jazz. But I do like movies”. As declarações de Shepp intercalam ele com a banda, vindo de momentos em que o vemos em seu quarto de hotel, no bar, andando de táxi (e lindamente recitando Rimbaud em francês) e tocando na rua, sozinho, com os passantes se juntando para vê-lo (muitos com cara de “quem é esse?”). Os últimos minutos do filme focam a apresentação no clube.






MY NAME IS ALBERT AYLER” (2005)
Dir.: Kasper Collin

Pode-se dizer que os fãs tiveram que ter muita paciência até poderem ter um bom documentário sobre o saxofonista Albert Ayler (1936-1970) para desfrutar. E isso aconteceu pelas mãos de um diretor sueco, Kasper Collin – curiosamente, as primeiras gravações de Ayler apareceram por um selo sueco. Um dos problemas de um documentário sobre um personagem como Ayler é a escassez de vídeos disponíveis. Mas há algumas poucas imagens preciosas dele tocando. O documentário segue uma linha um pouco mais biográfica, apresentando o músico e sua história por meio de depoimentos de antigos parceiros, como Sunny Murray e Gary Peacock, e familiares, como seu idoso pai, Edward, e sua esposa, Mary Maria Parks, que só quis falar por telefone com o diretor. Emocionante para quem acompanha a obra do saxofonista é ver seu irmão e antigo colaborador, afastado da música por problemas psiquiátricos, Don Ayler (1942-2007), dando seu depoimento. (Veja aqui)




BE KNOWN” (2014)
Dir.: Dwayne Johnson-Cochran

Este documentário apresenta o visceral percussionista Kahil El’ Zabar, que tivemos a oportunidade de ver no Brasil ao lado de Archie Shepp em 2018. O diretor Dwayne Johnson-Cochran acompanhou El’ Zabar em uma turnê (a “Black History Month Tour”), durante algumas semanas pelos Estados Unidos, em 2007. É daí que vem as imagens que ele irá trabalhar para compor o documentário, que tem como subtítulo “The Mystery of Kahil El’ Zabar”. Podemos vê-lo dando aula, tocando com o Ethnic Heritage Ensemble, vibrando com a música que faz e o faz ser quem é. Mas também muito de seu íntimo aparece em cena. A vida de músico ligado a um meio underground é difícil, sabemos bem, as condições financeiras, sempre uma dúvida, e El’ Zabar não esconde o quanto tudo isso pode ser desgastante, especialmente para alguém que tem sete filhos. Disponível em DVD.    





STEP ACROSS THE BORDER” (1990)
Dir.: Nicolas Humbert e Werner Penzel

Este documentário é daqueles que vale não apenas pelo personagem em foco, mas pela inventividade do filme em si. Feito pela dupla de cineastas entre 1988 e 90, o doc, filmado em 35mm e P&B, enfoca o guitarrista britânico Fred Frith. O músico foi acompanhado em viagens por Europa, Japão e Estados Unidos. Vemos Frith (e alguns de seus parceiros, como Tom Cora, Bob Ostertag e John Zorn) no palco, nos bastidores, de folga relaxado, contando histórias. O bem armado diálogo entre imagens e sons é um dos pontos de força deste filme. A trlha sonora, com sua potência própria, acabou virando CD. O filme premiado percorreu muitos festivais, especialmente nos anos 90, e foi lançado em VHS à época. Nos anos 2000, apareceu em DVD com quase meia hora de extras.






ORNETTE: MADE IN AMERICA” (1985)
Dir.: Shirley Clarke

Caravan of Dreams foi um espaço cultural aberto em 1983 em Fort Worth, Texas, terra natal de Ornette Coleman (1930 -2015). A estreia do espaço contou com uma apresentação do Prime Time de Coleman  e serviu de gancho para a realização deste documentário. Na verdade, a diretora Shirley Clarke (1919-1997) começou a filmar Coleman no fim dos anos 60, com a ideia de fazer um documentário que não foi para frente, algo que só se concretizaria com este Made in America quase duas décadas depois. Entrevistas, ensaios, arquivos, trechos da performance da peça sinfônica Skies of America, de Coleman, pela Fort Worth Orchestra, tudo isso se junta para compor este documentário, que aborda o saxofonista e sua obra com muita inventividade. Em 2012, foi lançado em DVD e Blu-ray.






MUSICIAN” (2006)
Dir.: Daniel Kraus

Ken Vandermark foi um dos mais jovens artistas ligados ao free jazz a receber um documentário sobre seu trabalho. Este filme foi realizado no âmbito de um projeto maior do diretor de Chicago Daniel Kraus. Chamada de “Work Series”, era formada por docs de cerca de uma hora sobre profissionais de diferentes áreas, que rendeu quatro títulos: “Preacher”, “Professor”, “Sheriff” e este Musician. Interessante ele ter escolhido Vandermark, à época um músico em ascensão não apenas dentro do free: ele havia, por exemplo, sido premiado alguns anos antes com o prestigioso MacArthur Fellowship. O que Musician mostra é a árdua rotina de um saxofonista, não só a parte de ensaios e apresentações, mas também o seu dia a dia: telefonemas profissionais intermináveis, montagem de agenda, organização de shows. Também é especialmente interessante ver Vandermark lutando com suas composições, a ideia que tão dificilmente alcança sua versão final. Para nós que já pudemos ver Vandermark em ação em três oportunidades no Brasil na última década, é especialmente interessante vê-lo por trás das cortinas. O filme apareceu em DVD em 2008.






THE BREATH COURSES THROUGH US” (2013)
Dir.: Alan Routh

O New York Art Quartet foi um grupo seminal do free jazz que reuniu entre 1964 e 65 o percussionista Milford Graves, o saxofonista John Tchicai (1936-2012) e o trombonista Roswell Rudd (1935-2017)  e alguns diferentes baixistas, como Reggie Workman e Lewis Worrell. A eles também se juntava às vezes o poeta e ativista Amiri Baraka (1934-2014). O documentário registra um encontro de comemoração dos 35 anos do New York Art Quartet, que culminou com uma apresentação em NY, em junho de 1999, registrada em disco. O concerto e um jantar na casa de Rudd, que reuniu Graves, Tchicai, Workman e Baraka, formam o núcleo do filme. Depoimentos dos músicos e trechos da apresentação vão se alternando para compor a narrativa. (Veja aqui)     





MILFORD GRAVES: FULL MANTIS” (2018)
Dir.: Jake Meginsky / Codir.: Neil Young

Um pouco do universo do percussionista Milford Graves já havia sido apresentado em “Speaking In Tongues”, um documentário feito por Doug Harris, na década de 1980, para a TV alemã. Mas este Milford Graves: Full Mantis amplia e aprofunda o que vimos lá, sendo realmente obrigatório para quem acompanha e admira seu trabalho. Este é um retrato íntimo, focado completamente em Graves, sempre em sua singular morada, deixando de lado as habituais intervenções em documentários de amigos, familiares e parceiros contando histórias e curiosidades. Escapando da fórmula tradicional desse tipo de filme, é criada uma narrativa poética que bem dialoga com a arte do protagonista. O documentário pôde ser visto no Brasil durante o festival In-Edit de 2019. 
  





VOICE: Sculpting Sound with Maja S. K. Ratkje” (2015)
Dir.: IJ. Biermann e Kai Miedendorp

Este filme levou alguns anos para ser completado. Os diretores acompanharam a artista (voz, eletrônicos, teclados) norueguesa Maja S. K. Ratkje em diferentes momentos (estúdio, palco, ensaio) para compor este poético painel sobre ela e seu trabalho. Na tela, aparecem artistas conhecidas que trabalham com ela, em diferentes contextos, como Ikue Mori, Sylvie Courvoisier e Joëlle Léandre. Diferentemente de documentários tradicionais, em que várias pessoas costumam dar depoimentos sobre o retratado, aqui o foco está na própria Ratkje e sua relação com a voz, que nos conduz e abre novas percepções sobre sua obra.  






NULL SONNE NO POINT” (1997)
Dir.: Nicolas Humbert, Werner Penzel

Dos mesmos diretores de Step Across the Border, este Null Sonne No Point tem como foco o Art Ensemble of Chicago. O subtítulo do filme, Preparations for a Concert, sinaliza o que ele pretende nos ofertar: os diretores enfocam os músicos do AEOC nos bastidores e ensaios para uma apresentação em Munique, em outubro de 1996, montando um delicado filme não linear e não narrativo. A Roscoe Mitchell, Famoudou Don Moye, Malachi Favors (1927-2004) e Lester Bowie (1941-1999) se une o músico alemão Hartmut Geerken – sentimos a falta de Joseph Jarman (1937-2019), que à época estava afastado do grupo, concentrado em seus estudos budistas. O que o filme captura, em imagens em sua maioria feitas a partir de planos fechados, detalhistas, é o clima por trás da música que esperamos que os artistas nos ofereçam, ressaltando atmosferas e sensações que, na verdade, sempre estão presentes no fazer artístico, mesmo que muitas vezes não nos demos conta. Saiu em DVD. (Veja aqui)





SUNNY’S TIME NOW” (2008)
Dir.: Antoine Prum

Pioneiro baterista do free jazz, Sunny Murray (1936-2017) recebeu a homenagem que merecia com este documentário. Se teve um baterista que realmente começou a tocar free no início dos anos 1960 foi Murray. E mais do que “apenas” um percussionista vital para a liberdade desta música, Murray desenvolveu uma carreira longa e sólida como líder, tendo deixado dezenas de álbuns pelo caminho. Sunny’s Time Now conta um pouco dessa história e não apenas recorrendo a arquivos e memórias, mas o acompanhando em seus compromissos, palco e estrada, quando as filmagens foram feitas. Por exemplo, o seguimos na van rumo a concertos, junto com seus parceiros, conversando sobre a música e a cena de ontem e de hoje. Além das declarações do próprio Murray, há entrevistas com alguns dos que fizeram parte de sua história, como Cecil Taylor, Bobby Few, Tony Oxley, William Parker e Val Wilmer. O filme foi editado como DVD duplo, com os extras trazendo versões longas das entrevistas com Murray e outros.






A BOOKSHELF ON TOP OF THE SKY: 12 stories about Zorn” (2004)
Dir.: Claudia Heuermann

A diretora alemã Claudia Heuermann oferece neste filme uma visão particular do universo artístico de John Zorn. Acompanhando o músico por anos – com um Zorn ora mais jovem ora mais velho se alternando na tela –, nos leva por ensaios, bastidores, palcos, estúdio, apresentando seu processo criacional sob diferentes ângulos. O sisudo Zorn aparece inclusive sorrindo em não poucos momentos, exalando a descontração e intimidade de muitas das filmagens. Parceiros e projetos de diversos períodos surgem no decorrer do filme, vemos Masada, Naked City, Cobra, todos em ação. Mas vale frisar que este é um filme mais indicado a quem já adentrou o universo de Zorn, não se trata de um doc biográfico de apresentação à sua arte.







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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)